Mais infinito, menos infinito

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias em que tudo me é estranho. Para ser rigorosa, todos. Tudo me é exterior, incompatível. Como nos transplantes de órgãos. A compatibilidade do D.N.A. chega aí. Mas depois é todo o organismo a tentar reconhecer a pertença. A nova pertença, qualificada e aconselhada. E mesmo assim reage. Às vezes. É o sistema imunológico que rejeita afinal o que é corpo estranho e mesmo para salvar, estranho. Ninguém sabe de facto o que nos salva, para além de probabilidades cientificamente analisadas, ou nem mesmo assim seguras. Até um ponto. O ponto de ruptura com o que é estranho. A morte. A morte é uma criatura estranha.

Retratos de família. Amores-perfeitos. Existem? Sim, as flores. Cresce-se numa cadeia de muitos elos de estranheza, só porque é assim a família de que se parte. E só isso, sem se dar conta durante muito tempo, cria um bicho estranho também ele a crescer subterraneamente e a insinuar que por vezes somos matérias tão diferentes que não há ADN que explique o que nos liga senão uma tradição. E que daí ao amor vão léguas submarinas. Difíceis laços estruturados em rede, em que uns nos trazem outros agarrados por inerência inultrapassável. Proximidades a tornar nítido um desenho de incompatíveis formas. Desarmonias. Quando se tem a sorte de ter uma família grande, é bom. Há sempre aquela metade difícil. Dispersa por inúmeros ramos. Mas há a outra, também. E às vezes difícil. Também. E é talvez assim que se começa lentamente a delinear contornos de imperfeição, sentimentos ambivalentes e contraditórios e uma síntese progressiva entre uns e outros. Valiosa, essa. A aprendizagem da imperfeição. Dos amores imperfeitos. E entre aqueles que são mais infinitos, e aqueles que são menos infinitos, cresce a certeza de que um ou outro, são definitivamente finitos.

Ter um avô que se suicidou pouco antes de eu nascer, não me levou nunca a levar-lhe a mal a desfeita. Falava-se pouco desse avô, como se dele pouco sobrasse para além disso. Uma ou duas fotografias minúsculas com aquele detalhe fino do contacto directo com o negativo. A luz desenhada com precisão. O recorte nítido. Mais nítido do que ficou em mim que dele pouco ouvi. Pouco entendi daquelas feições. Um rosto severo e cerrado de contrariedade. Idealismo, talvez. Uma questão de honra, dizia-se. De vergonha. Sítio pequeno. Cercado da vasta planície coberta daquela luz inclemente sobre tudo. E sobre esse talvez idealismo que o fez desistir. Tantos filhos e tantos netos, uma mulher honesta e trabalhadora, e deixou-se sucumbir pelo erro da única filha mulher. Rapariga de menor virtude do que as agruras do tempo e da terra – dele – admitiam.

O meu pobre avô Custódio Augusto. Deixou-nos honestamente a culpa em herança. A sua. Não a sua vivida, mas a sua contada. Para se fazer significar. A de existir assim. E toda a outra culpa, que não a dele, sobretudo, e viva para sempre. Afinal. Honestamente e com toda a ternura que me causa esse avô desconhecido, para além do pouco contado – que pena não ter perguntado mais – e de duas únicas fotografias naquele fato preto das ocasiões, não por elegância, que no campo não fazia talvez o paradigma de um homem sóbrio e reflexivo como ele, mas da decência, seja lá o que for que isso é, valeu a pena? Eu digo, e digo com voz pequenina porque o universo é grande e eu não, que temos que olhar com a força possível aquilo de que gostamos, sem memória. Só olhar o momento talvez assoberbado por um sentimento se for maior. E chega para passar ao outro dia. Não ambicionar mais do que a profundidade honesta de um momento, como uma engenharia que não se sabe a que construção leva. Mas algo ficará construído. Na economia complexa da existência.

Mas ele não teve a serenidade de aceitar e deixar passar o tempo sobre aquilo que não podia mudar. Mudou o que estava ao seu alcance. Não se conformando com uma realidade, menos do que ideal, real. E deixou que a culpa tomasse conta da vida e depois, da morte. Até muito depois. A culpa é um sentimento inútil à falta de outras qualidades. Sentimentos. As pessoas gostam da sua culpa como de um animal doméstico. Mau conselheiro, quando só. Aborrecido, incómodo, às vezes. Mas o seu animal de estimação. É mais fácil criá-lo do que a um animal desconhecido. Mas triste. Como o medo. O pior inimigo da liberdade. E a culpa, esse animal de estimação, bem alimentado leva longe. A menos-infinito. Como ao avô quase desconhecido, ao desconhecido. E nada mudou à face do universo com a herança que nos deixou.

Não sei se é fantasia minha, ou se é a memória do meu próprio olhar ali solto em liberdade condiciona sobre as planícies, sobre o gosto árido das planícies, mas sempre me lembro de gente do Alentejo com uma espécie de olhar mais atirado para longe. Sem obstáculos. E a olhar directamente os olhos dos outros. Dantes. A perscrutar almas e vidas. Talvez a transparência entranhada entre muitas rugas de expressão ou de protecção da íris, daquela luz toda. A semicerrar pálpebras e a atirar mais fundamente o olhar para o espaço grande. No campo. Mas melancólico olhar, talvez. A gerar frio na alma torrada daqueles calores. Sem sombra para abrigo. Virada para dentro então.

/ Terra da cor dos olhos de quem olha! / A paz que se adivinha / Na tua solidão / Que nenhuma mesquinha / Condição / Pode compreender e povoar! / O mistério da tua imensidão / Onde o tempo caminha / Sem nunca chegar!…Miguel Torga, sobre o Alentejo. E porque não existe uma realidade constante. Mas, sim, estados de consciência, que definem o tom de um olhar nas coisas. Penso às vezes que é a lonjura do mar no interior. Que ali parecia não poder levar a lado nenhum. O tempo ou os passos. Sempre me intrigou o fenómeno do suicídio na planície alentejana. Deveria dizer planura, talvez. Ondulada e ampla. Arenosa, às vezes, e pontuada de sobreiros. Ou oliveiras, a intervalos, como se de propósito para deixar espaço ao desenho nítido das sombras. Nas dunas infindáveis sem mar à vista. Está mais que demonstrado que uma certa alternância nas vagas do sentir momentâneo salva de muitas prostrações, emoções variadas e megalomanias existenciais. Um momento depois, sabe-se, e o que era para ser nessa economia muito espontânea, já não é. É o que nunca era para ter sido senão como vislumbre. Maré cheia, maré vazia. E sempre alternando. Sempre me fez pensar essa melancolia atroz da planura das planícies. Uma espécie de insularidade não reconhecida, não pressentida. A moldar as disposições para a morte. País tão pequeno este e mesmo assim.

E ela, pelo contrário, tão, tão resistente. Tão de infinitos. Ainda não passou um mês. Sobre minha árvore-mãe caída. E eu dela. Uma folha. Um lamento privado. De pessoa sem árvore, sem raízes, sem frutos. Um dia destes soube que tinha chegado a outra metade diferente da vida. A menor. Soube-o como folha caída abraçada a outra folha caída da mesma árvore. Ali, ambos, sós em frente à árvore – é bom ter um irmão – ela ainda ali caída e para sempre arrancada pelas raízes. Dias depois os dias começaram a chover e foi terrível. Saber que lhe entregámos o corpo à terra como era seu destino. De árvore.

Estávamos ali, dois troncos quebrados à beira da árvore mãe e por momentos entrelaçados num abraço raro e de silêncio, e, na despedida inclemente, a sós. É bom haver um outro ramo da mesma árvore -caída, já disse – e enlaçado no outro único ramo da mesma árvore caída. Ele respondeu-me estamos todos. Cada vez mais sós. Disse como um ramo da árvore ao outro ramo menor da mesma árvore. Foi a coisa mais existencial que lhe ouvi em muito tempo. Morri para dentro um bocadinho e por ele quando disse. Com ele. É bom ter um irmão. Também ali em frente à nossa árvore caída. Já entregue a outra dimensão da cósmica destinação se a há. Ou senão, de um outro sentido qualquer no não sentido de não se querer sentir. Ser capaz. De continuar. E há qualquer coisa especial no facto de termos caído da mesma árvore. Árvore – tronco e raízes fundas, disfarçadas nos objectos que deixou. Tantas coisas que só eu sei por detrás dos sorrisos fixos nas fotografias. Que só eu vou lembrar porque espiava os seus males. Mesmo sem os querer. Saber. Há momentos em que o meu luto é de guerra. O negro é o que se faz por dentro e que nem sempre transpira nas roupas. Mesmo no riso. Estávamos ali. Ramos caídos mas num destino possível. Ou eu e uma folha do tronco ao lado. Ou do mesmo tronco. Com a mesma árvore a quem chorar, com as mesmas raízes soltas da terra. Estávamos ali. Ramos caídos da árvore. Mas estávamos ali, subtilmente entrelaçados para o resto da vida. E há vida.

Voltando aos amores-perfeitos. Amores-perfeitos adubados e frágeis mesmo assim. Lindos e frágeis. De aparência. Mas fortes e resistentes. Frágeis e resistentes, como ela. Ao frio. Ao calor. Coloridos e aveludados e manchados de escuro como asas de borboleta. Será talvez assim que as atraem. E às abelhas. Mas duram uma vida de flor. Falo tantas vezes em rosas. Sempre me lembro de as termos em casa, em vasos. Amores-perfeitos, nunca. No entanto, infinitos.

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