A força do que é inútil   

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]bsen, o maior dramaturgo do século XIX, esteve vinte anos fora da Noruega e foi nesse período que se tornou uma estrela do teatro internacional. Durante parte da sua ausência o seu verdadeiro lar foi o Café Maximilian, em Munique, onde, com a sua barba flamejante e os inúmeros jornais espalhados pela mesa, era um ponto de atracção e de admiração dos turistas. De tal modo que quando voltou à Noruega, o dono do Maximilian, em desespero, contratou um figurante de grandes barbas e semelhanças físicas com o dramaturgo, para ocupar a sua mesa todos os dias durante três horas a folhear jornais com um idêntico recolhimento e ímpeto físico a dobrá-los.

Aquele que não passava de um símbolo e que viveu sempre com tantas dificuldades materiais, tornara-se vital para a sobrevivência do café.

Igualmente, é hoje incalculável o volume de negócios, de eventos musicais e de lucro que tem movido o nome e a música de Mozart. Algo que seria muito estranho para o coveiro que em 6 de Dezembro de 1791 o enterrou na vala comum, como alguém imprestável e facilmente substituível. E poucos nomes cristalizam melhor como símbolo de uma civilização, a europeia.

Há poucas semanas li que o Gaudi teria acabado os seus dias a pedir esmola a quem passava nas Ramblas. Espantado, vasculhei em várias fontes e não consegui perceber se o genial arquitecto acabou mesmo na miséria profunda se a informação não passava de uma força de expressão. Mas apurei que acabou em grandes dificuldades financeiras e que o seu aspecto era o de um homem cujos problemas já faziam negligenciar a higiene e o estado da sua indumentária. Ou seja, morreu aquém da dignidade que impunham as suas obras. E hoje há maior símbolo de Barcelona?

Servem estes exemplos para constatar: os valores que fomentam o status social apresentam-se o mais das vezes invertidos – tendo em conta aquilo que no futuro verdadeiramente renderá, aquilo que alargará a liberdade expressiva do homem e lhe dilata o imaginário, ou seja, as modalidades de ser. Demos um exemplo: o futuro de Cristiano Ronaldo, assim que deixar de jogar à bola é nulo; comparativamente quantos conhecem o nome de Júlio Pomar, cuja obra continuará viva daqui a cinco séculos?

Nestes tempos incautos de esvaziamento da promessa humanista, trucidada pelo primado da economia e da estatística, urgia que os valores do símbolo recuperassem terreno na escala da hierarquia social. Hoje vivemos sobre a ditadura do utilitarismo e da funcionalidade. Os quais dependem duma obturação do simbólico. Daí a haver uma ultrapassagem dos regimes simbólicos no imaginário colectivo vai uma enorme distância.

«No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte», lembra Nuccio Ordine. Mas esta é a mesma dimensão reducionista que faz do sexo um mero exercício de fisiologia, numa monocordia pornográfica, e perdeu de vista a inteligência, a criatividade, do erotismo.

Eis a primeira mentira que é preciso desalojar, a de que vivemos num mundo pós-simbólico – deu-se apenas uma deslocação nos suportes mediáticos. Hoje há livros e viés da Gestão, por exemplo, que se servem da lição dos clássicos greco-romanos para vender melhor, persuadir melhor, agenciar os negócios ou prodigalizar uma dinâmica de grupo; já inversamente, não há um livro de literatura dessa área que possa dizer-se que tenha nutrido o imaginário humano com o mesmo teor vitamínico e duração.

Quando um arauto neo-liberal vai ao cinema e se presta a alimentar a segunda maior indústria dos EUA dar-se-á conta do que é que está a fazer? Está a entrar na caverna de Platão e a dar sequência à engrenagem dos mitos? Aquela mesma criatura que depois virá defender que vivemos num estádio pós-simbólico saliva pela sequela de Blade Runner: a narrativa que triunfou porque cerziu a fábula dos «amores contrariados» (a mesma de Romeu e Julieta) com o mito do Fausto, numa trama futurista.

Apetece dizer que o afluxo da sociedade neo-liberal contemporânea não passa do exacerbamento do “complexo de Midas” vivido à sombra da “síndrome de Midas”. O complexo prende-se com o medo (incutido desde a infância) de não se ser capaz de valorização social, no sentido do sucesso económico, e a síndrome, no seu epítome, clarifica o ódio por tudo que não seja “dinheiro” e não traduza a ascensão social por via dos bens que o “ouro” autoriza, querendo reverter em fobia “regeneradora” o que afinal se apresentava como um handicap em Midas: a amputação da sua sensibilidade.

Temo que com a investidura de Trump se irão acrescentar dois elementos aleatórios a esta conjugação já de si perigosa: uma celebração do imaginário do casino (a aposta no jogo e no bluff enquanto impulsionadores do económico, do social, até mesmo da guerra, aliás como corolário do sistema de Wall Street) e uma nova e arbitrária escalada da infantil cruzada do numerário contra o simbólico. Entretanto, seria bom lembrar: nada que assente exclusivamente no plano da vida material trouxe alguma vez alguma coisa de relevante à memória dos povos.

Por fora disto, tudo o que é inútil se nos afigura irrenunciável: do amor à dignidade ou à melancolia na música de John Surman, o saxofonista que quis conhecer o vento (os abismos do free jazz) para enfim nos tocar o coração.

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