Diário de Pequim | Pequim, 10 de Abril de 1978

António Graça de Abreu

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Portugal, com o PCP (m-l), comprometi-me a assinar um contrato de trabalho com os chineses que se estenderia por quatro anos na China. Chegado às Edições, nunca os camaradas me falaram em assinar o tal contrato ou na duração da estada em Pequim. Trataram-me da papelada de trabalho e dos documentos de estadia, subentendendo os chineses que ficarei por quatro anos.
Não estou preocupado. Sinto-me bem no que faço, aprendo todos os dias, estou numa fase de transição da minha vida. Depois da Alemanha, da Guiné-Bissau, agora a China, três continentes, Europa, África e Ásia, nada mau, três experiências riquíssimas em dez anos: Ou seja a emigração, a guerra de África, a vivência num grande, sinuoso e fascinante país socialista. Ainda só tenho trinta anos. Isto promete!…

Jinghong, Xishuanbanna, 19 de Abril de 1978

O nome Xishuangbanna soa estranho. A região fica a umas poucas léguas das florestas da Birmânia, a uma centena de quilómetros do Laos, não longe da Tailândia. É habitada por umas tantas minorias nacionais, dezasseis a saber, pequenos grupos étnicos quase todos com língua e escrita própria, bem diferentes dos chineses han. Os tai, aparentados com os tailandeses, são a grande minoria nesta região.
Voei de Pequim para Kunming, capital da província de Yunnan, num Bac 111, o Trident, o bimotor a jacto inglês que equipa as linhas aéreas comerciais chinesas. Depois, um Antonov 24, a hélice, avião construído na União Soviética e já fora de moda, furou montanhas de nuvens, serpenteou no vazio sobre cumes e cumes de montanhas e deixou-me em Simao, a cidadezinha com aeroporto mais próxima de Xishuangbanna. Continuei viagem por mais 160 quilómetros de estrada, entre montes e vales num pequeno autocarro encavalitado numa esplendorosa paisagem sub-tropical, esfuziante de cores, perfumes e surpresas.
Vim, com um pequeno grupo das Edições de Pequim para, em Xishuangbanna, assistir e participar na Festa da Água, o ano novo destas populações que fazem do rejuvenescer da Primavera o tempo certo para depurar corpo e mente, com libações em honra da perfeita água.
Estou alojado numa pequena pousada, uma espécie de bungalows unidos por caramanchões e varandas, entre jardins e palmares, na sombra serena do silêncio da floresta tropical. O meu quarto, com chão de cimento e as comodidades mínimas, é o número 5. Sete metros ao lado, já transformado em museu, fica o quarto número 1 onde se alojou o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai na sua vinda a Xishuangbanna em 1973, exactamente para a Festa da Água. Na memória de tão excelsa companhia, sinto-me uma pessoa importante.
Ontem em Jinghong, a sede da prefeitura de Xishuangbana, encaminharam-me para uma aldeia dos arredores, deixaram-me num dos terreiros para a grande festa. Vesti uma camisola interior vermelha, umas calças velhas, calcei uns chinelos de dedo e levei uma bacia de esmalte, novinha em folha. Ali estava o pobre letrado lusitano a cirandar entre a gente da terra, armado para a faiscante, encharcante e entusiasmante batalha da água. E que batalha, e que festa, meus senhores!…
Os tambores dos tai começam a rufar, as marimbas a tanger, as flautas a tocar. Iniciam-se os singulares folguedos, dança-se em círculo em volta dos músicos, cada um vai encher a sua bacia no interior de umas tantas canoas espalhadas em redor, o casco vazio funciona como reservatório da água trazida para aqui em grandes bidons. Regressamos à roda e lançamos, aspergimos o excelente líquido sobre o parceiro ou parceira da frente, do lado, de trás. Alguma confusão mas depois apanhamos o ritmo do bailado nos grandes círculos, há água e mais água a borrifar toda a gente, as pessoas estão esplendorosamente encharcadas, da cabeça aos pés. Quanto mais inundadas, mais limpas e mais saem os pecados. As meninas tai, jovens, esbeltas, riem, dançam, amaneiram os gestos, rodam as mãos e os dedos no ar como requintadas andaluzas. Usam flores e um pente nos cabelos, mostram as saias ou calças finas, justas, bem molhadas, as reduzidas blusas humedecidas agarradas ao corpo, os perfeitos umbigos desnudados, as curvas redondas abaixo da pequena anca, os seios húmidos, túmidos, meio escondidos, meio ao léu, de bicos empinados e bonitos. Dançam como deusas nas terras dos confins do mundo, gráceis, femininas, raiz e tronco da vida dos homens.

Lá em baixo, no rio Lancang, há mais festa. Este grande rio, o quarto maior de toda a Ásia, desce desde o Tibete até aqui, quase que por socalcos. Ao sair da China, 50 quilómetros a sul de Xishuanbanna, passa a chamar-se Mekong e a ser não só parcialmente navegável, mas também a assumir-se como a grande estrada fluvial entre a China, o Laos e o Vietnam. No delta, a sul de Saigão, cansado da movimentada jornada, dilui-se aos poucos no grande Oceano Pacífico.
No rio Lancang chinês, ou melhor no Mekong, há hoje corridas de barcos-dragão, petardos, fogo-de-artifício, danças do pavão, jogos, cantos e danças. Na margem, acompanho o desfile meio espontâneo de centenas de mulheres, homens e crianças ataviadas com os seus melhores trajes, tudo gente das minorias nacionais locais. Há toucados enfeitados com adereços brilhantes, roupas de seda bordada com cintos de prata, túnicas de veludo, casaquinhos de algodão entrançado. Tudo colorido, a cheirar a novo e a festa. São os povos da planície ou das montanhas, as minorais nacionais estranhas para os chineses han na fala, entendimentos, usos e costumes.

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