Caverna de Kafka. Castelo de Platão

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á sempre aquela vista do castelo. De baixo para cima. O meu olhar esperançoso de que desta vez seja por uns tempos e que depois tudo. O tudo de sempre. Volte ao normal, por uns tempos, o normal de sempre. Avanço na direcção da porta. Do castelo. A porta ali ao lado, o castelo em frente, em cima.
Ai, ai ai, ai ai. Rola despedida curva abaixo. O castelo pelas costas. Casario acima. O calor a insuportar. A bandeira pendente.
Ai. Responde a caverna ao vento. Cidade acima, bandeira a adejar. Adejou e parou. Ai. Com um guincho de travões.
Take I – Travo a cadeira de rodas com um joelho e um canto da barriga, só um canto, para poder agarrar-lhe, para além da cadeira, os cotovelos. Inclinar-me para ela. Erguê-la. A cadeira escorada contra o carro de ladeira acima. Ou abaixo para ser optimista, ou, já não sei. Os cotovelos e deslindar-lhe os pés dos apoios para os pés. Que se levantam mas caem. Não encontro o travão da cadeira. Se calhar já não tem. Há um momento crucial em que, para dar o impulso de a entornar, quase assim, coitadinha da minha paciente sempre e sempre paciente em tudo isto, para o banco dianteiro do carro, me distraio do canto da barriga, do joelho na cadeira, e avanço o outro joelho em que quase sentada, há-de deslizar um pouco abruptamente para o banco. Enquanto a cadeira se solta e desenfreada descreve um curva vertiginosa em rota de colisão com a ambulância que avança entretanto numa correria desatada e uivante. Ao lado uns metros entre mim e o castelo, o segurança e um paramédico conversam da vida encostados a uma outra ambulância em repouso. Olham eles. Olho eu. Olho estarrecida, muda e estática a curva da cadeira. A ambulância que corre. A minha paciente que pesa e quase cai. A cadeira, que no seu desvario curvo, vence as leis normais da gravidade e sobe desvairada numa rota já escondida do olhar por detrás do carro. Os cotovelos da minha paciente, paciente, e o joelho a amparar-lhe as pernas vagas. Aterra no assento meio de lado. A ambulância pára mais à frente. A cadeira louca também. O segurança e o paramédico olham, eu olho. E disparato um pouco, alivio os fígados: pediu ajuda? Não, não pedi…
Sento-me no carro, aperto-lhe o cinto e digo-lhe qualquer coisa carinhosa. Respiro fundo, furiosamente. Eu respiro sempre fundo quando há tempo. Olho-a no seu alheamento paciente com desvelo. Porque é para além de tudo o mais. Mas um outro lado de mim, tem uma enorme vontade de rir com todo aquele potencial fílmico. A cadeira desvairada e a ambulância, em rota de colisão como nos desenhos animados. Mas o riso, fica um pouco lá atrás da melancolia de tudo.
Take II – Mais tarde na semana, o carro de ladeira acima, ou abaixo consoante a perspectiva. Os cotovelos, um joelho discreto a amparar a paciente, paciente, e outro a cadeira destravada, devia ter um travão mas se calhar já não tem, e o canto da barriga a ajudar. A paciente entornada com a delicadeza possível no banco dianteiro do carro. O joelho a prender a cadeira que gira um pouco sobre si própria, teimosa e impaciente, a querer libertar-se. Fechar a porta. Suspirar fundo e olhar em volta a querer exibir um ar triunfante. Talvez mesmo um sorriso. Ninguém. A observar, a ajudar. Isto correu bem. Devolver a cadeira.
Take III – A mesma cena, só que sem paramédicos, ambulância, segurança, cadeira de rodas, paciente. Na verdade a única coisa em comum é o carro de ladeira acima, com a patinha quase a descambar na valeta com sarjeta abismal, porque o segurança diz sempre encoste o mais à esquerda possível, e o nariz bem encostado ao sinal de sentido proibido, porque o segurança diz sempre encoste o mais possível ao sinal. Fecho a porta do carro de ladeira acima e de monco caído. Eu. O carro também por empatia. Não há cadeira tonta, não há paciente, paciente. Nada. Ficou lá. Para ir logo se vê para onde. De resto só aquela figura que diz, monstruosa, o preto, o macaco que está ali, o segurança. Um outro, neste caso. Mais nada. Devia disparatar de dentro para fora, mas estarreci e engoli em seco, como antes, a olhar para a cadeira, e um pouco reduzida a metade de mim, no dia longo. Desculpem-me todos os que leram aquela frase. Sim, não é que me choque mais a cru, é que me sinto morrer mais um pouco. Este humano demasiado humano. O excesso de realidade nos momentos limite. Hospitais devolvem qualquer um ao seu interior nem sempre belo. Mas há momentos feios de morrer. Lá fui de monco caído, como disse. No sentido contrário ao do castelo. Aliviada. Descansada. Ou não. Quase a antever a saga do cobertor azul. O pico anedótico dos episódios seguintes.
Grande plano final – E depois, aquela arrumação provisória de um trecho de vida a recobrir de qualquer outra coisa que distraia, que faça esquecer até amanhã. Fechar uma gaveta e abrir uma outra de onde se evole uma possibilidade de conforto. Voltar a casa. De caminho uma passagem rápida no supermercado. Uma daquelas latas do costume porque tenho a impressão de que ontem ainda não jantei. E num gesto compulsivo agarro com o mesmo desespero que a uma boia de salvação, um pé de orquídea. Minto, dois, na realidade três, pés de orquídeas. Phalaenopsis floridas, delicadas naqueles tons de branco a esverdear e olhos amarelos. E uma, branca mesmo, de olhos purpura, e a imperfeição de um sinal da mesma cor numa única pétala de cada flor. Como um pequenino borrão de tinta. Um sinal curioso e assimétrico de imperfeição. Como aquele sinal do meu pai. Negro e saliente sobre o canto do lábio superior. Não me lembro de que lado. E que os fotógrafos retocavam sempre, a fazê-lo desaparecer como marca de imperfeição. Havia um único retrato dele em que isso não aconteceu. Não lembro qual. Por aí no baú, tenho que o encontrar, mas não agora. E ela rebelava-se tanto. Gostava daquele sinal. Adorava vê-lo inteiro em cada retrato.
Flashback – Durante mais de dez anos nunca lhe falhámos um domingo. A meio da tarde, fizesse o tempo que fizesse. Até quando a ela já lhe custava muito percorrer aqueles passos. Limpar o mármore. Arranjar as flores frescas na jarra. Conversar sucintamente sobre a composição do ramo. Retirar um pé aqui e pôr ali. Ramos de folhagem recém colhida. Sempre variadas e naquela mistura aleatória de que ele gostava. E da quinta, para lhe serem mais próximas. Algumas plantadas por ele. Ainda. Depois ficávamos um pouco em silêncio. Cada uma no seu. Ou a falar com ele, talvez. E íamos. Mais adiante virávamo-nos sempre, mas sempre, para trás a ver como estava. A jarra. Só dizíamos coisas como hoje ficaram bonitas. Estão bem presas, não vão voar com o vento. Está bem. Hoje ficou bem. Quando deixei de poder ir com ela, deixei de ir. É uma dupla mágoa. Ela a limpar com o lencinho o rosto de esmalte da fotografia. Naquele gesto eterno das viúvas. A minha avó fazia o mesmo. Eterna saudade. Escrevemos-lhe. Sim.
E eu levo-as para casa, as orquídeas. Que mesmo em sombras delicadas na parede, me confortam. Junto-as num único vaso branco, na necessidade urgente de afogar os olhos nelas. O desvio. E deixá-las inundar-me com o animismo daqueles olhares benévolos. Encontrar a doçura possível do dia. Como elas, as flores, com uma marca de imperfeição. Mas é assim a vida. Zoom out.
E, pensando em filmes, só me lembro da cena final de “E tudo o vento levou”, com Scarlett O’Hara, personagem talvez por vezes um pouco tonta, mas corajosa, a dizer esse monumental estereotipo: “amanhã é outro dia…” E é… Acordar. Zoom in sobre um copo bonito de sumo de laranja e começar o dia com uma cor veemente…escrever cartas de amor, talvez, sei lá…e o que fôr. E depois.

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