Sem engordurar os dedos de vida

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ela boca morre o peixe, pela palavra morre a vida. Pela palavra morre a miséria da vida e nasce a flor viçosa do esplendor humano. A palavra aponta a miséria para superá-la, para sará-la, curá-la. Só a palavra cura a vida, só a poesia cura a realidade. Esta é a poesia, o sentido primeiro da poesia de Mariana Ianelli, na grande tradição de Fernando Pessoa. Mariana acredita na palavra redentora. A palavra redentora é a palavra poética. A palavra que começa sem começo. Que acaba sem fim. A palavra que magicamente desconhece a vida.
Mariana Ianelli faz uma das coisas mais difíceis de serem feitas em poesia: com os materiais da miséria, com os materiais da história humana repleta de atrocidades, constrói um arranha-céus de optimismo. Mas não se pense que optimismo se identifica com lirismo caduco ou com pieguice de polichinelo. Melhor seria dizermos que, para além da beleza dos seus versos, há ainda a desgraça do optimismo. Desgraça bem maior do que o pessimismo é o optimismo. Acreditar na palavra apesar de tudo, contra tudo e contra todos, acreditar na palavra como transformação, como advento, como o que pode e vai salvar o mundo é mais miserável do que não acreditar. Quem acredita na palavra poética como redentora do humano e do mundo sofre mais do que um pessimista. O que dói é acreditar e carregar essa crença nas costas. Não acreditar em nada não dói sequer uma unha. O optimismo, e isso aprende-se nos poemas de Mariana Ianelli, é a maturidade da miséria. Ao invés de acusar a miséria, de lhe pôr as culpas em cima, estes poemas ordenam as misérias com palavras, e é com este movimento que acontece o inesperado. Este inesperado é o poema que nos faz ver o que já julgávamos ter visto. O pessimismo é a adolescência da miséria. e o optimismo a maturidade da mesma. E quando digo aqui miséria, não falo apenas da miséria humana, mas a miséria de todas as coisas, a miséria do tempo com tudo o que engole.
Embora se tenha dito atrás que Mariana usa os materiais da miséria e os transforma, não se quer com isso dizer que se trate de uma poética da reciclagem. Uma coisa é fazer uma estátua com o lixo da rua, outra bem diferente é ordenar o lixo da rua de modo a poder seguir em frente. Assim são os poemas de Mariana. Nem descreve a realidade, nem a recicla. Os poemas de Mariana ordenam a realidade, de modo a caminharmos melhor e seguirmos em frente. Não temos de ter vergonha do lixo, das nossas misérias, as palavras sabem delas melhor do que nós e ao seguirmos as palavras, seguimos em frente, seguimos acima da vida. Há na poética contemporânea muito de reciclagem, mas não é o caso dos poemas de Mariana Ianelli. Os seus poemas destacam-se radicalmente daquilo a que se usa chamar de poesia contemporânea, tanto na forma quanto no conteúdo, como se verá em seguida ao analisarmos de perto um dos seus livros. A poesia de Mariana é uma poesia apocalíptica, no sentido literal do termo, uma poesia da revelação, uma poesia ainda por vir. Aquilo que está por vir não é contemporâneo, obviamente, mas apocalíptico.

A poesia desta jovem poeta tem a grandiloquência dos mitos, da autoridade do passado e o tom severo e encantatório da elegia. Não é por acaso que os seus versos começam todos em maiúsculas, quer sucedam a um ponto final, a uma virgula ou a nada. A vida é verso a verso e não uma correria até ao fim. Assim são os poemas da Mariana. Os poemas de Mariana Ianelli não falam da vida, não imitam a vida, não a descrevem. A vida é para quem não pode mais nada. Vejam-se exemplos. No seu livro Passagens, à página 31, escreve:
“Eu persisti,”
Neste início de poema, ainda antes de começarmos, paramos. Paramos por duas razões: pela forma e pelo conteúdo. Paramos porque pela primeira vez estamos a ver o sentido pleno e contraditório deste verbo, persistir, nesta primeira pessoa a dizer o verbo: Eu persisti, … a vírgula obriga-nos, aqui, a parar mais do que qualquer ponto final usualmente nos pára. Eu persisti só poderia ter ou vírgula ou nada, nunca um ponto final. E isto compreende-se pelo que falta, pelo que parece faltar à transitividade do verbo. Este verso faz-nos ver que persistir é parar. Persistir, que sempre tomamos por uma acção violenta de continuidade, aqui explode na nossa atenção como sendo o oposto. Eu persisti quer dizer “eu parei”, “eu fiquei”, “eu mantenho-me” “eu estou presente”, “eu sou”, ou como diriam os gregos antigos, “egw andreios eimi” (“eu sou corajoso”), eu mantenho-me no lugar onde sempre estive. Ou ainda, como ela escreve à página 23 do mesmo livro:
“Caiam todos sobre mim: eu subsisto.”
Trata-se em poucos versos de um projecto que depois será sustentado verso a verso ao longo do livro: o sentido de quem se mantém só, repleta de história. Porque a sua poesia não rejeita o conhecimento do passado, não rejeita mostrar-se como parte da miséria que assola o mundo desde o início dos tempos. Esta poesia está muito pouco preocupada com inovações formais. Isso é assumido de imediato pelos versos iniciados sempre por maiúsculas, mas não só, também há versos que no seu conteúdo nos dizem que é assim que esta poeta pensa, que esta poeta assume seu lugar no corpus poeticus, leia-se o verso à página 79:
“Os falsos poetas contemporâneos,”.
E, nesse mesmo poema, o primeiro verso diz: “Retorna para o Tártaro,” e, adiante: “E, depois, as Fúrias aprontarão”. Assim Mariana Ianelli assume a temporalidade, assume o mundo como seu objecto poético, e não apenas o seu lugar claustrofóbico: “Nós temos em comum este corpo que nos trai.” O corpo é uma prisão, viver no corpo e pelo corpo é recusar a totalidade do mundo, da história, da temporalidade. Viver para além da prisão do corpo é, para Mariana, a única possibilidade de fazer poesia. E, a tudo isto, se liga ainda um artifício muito bem conseguido: a voz desta mulher, desta poeta antiga construindo o seu passado, é a voz de um homem, a voz masculina. Por que faz ela isto? Veja-se como ela termina um dos seus poemas, à página 55:
“De um homem frente ao signo da morte, / Homem que eu jamais seria.”
Não se trata de uma imitação da heteronímia de Fernando Pessoa, mas sim de uma impossibilidade de nos aceitarmos, de aceitarmos que “passamos”, que estamos aqui de passagem, que “temos em comum este corpo que nos trai.” E com ele, com esta traição que nos habita, nesta traição que transportamos temos de defender as palavras. Rejeitar a sua própria voz, a voz com a qual responde pela manhã ao seu marido ou à tarde à rapariga da loja, é reconhecer que a vida não tem nada que entrar no poema. A vida não é p’r’aqui chamada. E, neste particular, sim, neste particular tem a ver com Fernando Pessoa. Não enquanto imitação, mas como profundo enraizamento numa estética que recusa que a vida entre poema adentro. Os poemas de Mariana Ianelli têm seus pés fortemente fincados aquém e além da vida, como podemos ver neste verso: “Com meus dedos engordurados de vida.” É assim que a poeta se vê ao chegar ao poema, ao debruçar-se sobre si mesma, sobre a página, sobre o poema: com os dedos engordurados de vida. E lembramos de imediato o verso final de um grande poema de Álvaro de Campos: “Raios parta a vida e quem lá ande.”
Nos poemas de Mariana, há a claridade quase ofuscante da vida não valer nada, da vida não valer senão o que se faz dela, o que se faz com ela. A vida existe para ser ultrapassada. Conhecer a vida é também fazer pouco mais que nada, saber pouco mais que nada, encantar nada. Leia-se outro verso de Mariana: “Com teu mágico desconhecimento da vida”. Desconheça-se a vida para conhecer a magia, a palavra, o mistério. Desconhecer a vida é existir sem engordurar os dedos de vida; é encantar, é ter o poder antigo da magia, o poder das palavras que abrem clareiras, que fazem ver, como se a cegueira fosse antes do poema a nossa única morada. Desconhecer a vida não é desconhecer a palavra. Desconhecer a vida não é desconhecer o que mais importa. Desconhecer a vida é a magia que hoje ainda nos é possível realizar. Mariana sabe que a nossa vida vale menos que um poema, menos que um verso. E esta é a sua guerra: contra a ausência de poesia que nos habita. A poesia dela não é pessimista, embora não nos faça rir, nem sequer ficar contentes. A poesia é de outra ordem. Da ordem da beleza, da ordem do que nos mostra a vida morrendo diante de uma palavra. E isto só pode fazer com que nós, humanos que vivemos nas palavras, tenhamos um esgar de esperança de que há Deus, o outro ou o nada para nos ouvir e compreender. Por fim, a beleza dos versos de Mariana Ianelli, avulso, como a própria poesia dela e a própria vida:
“Vivendo entre a espada, o luto e uma elegia. (…)”
“Esta dor voltou a ser (…)”
“O lugar santo visto à luz da chama, (…)”
“E os nossos iguais, que eram tantos, (…)”
“Que nos misturássemos aos mortos, (…)”
“Não fica o espaço transitório do nosso corpo, (…)”
“Todos nós caímos em desgraça. (…)”
“Desejei um tempo pela manhã (…)”

“Eu te quis vivo,
Transtornado, mas vivo. (…)”

“Contornada a margem fina
Do esquecimento,
Outra capital aparecerá
Sobre a antiga. (…)”

“Para as mão de quem eu nunca vi, (…)”
“Com teu mágico desconhecimento da vida (…)”
“Continuaste errando em nome da tua velha sensibilidade. (…)”
“E a mente padece como se arfasse, (…)”
“Estás muito bem guardado em tua alma. (…)

“O que por ti já passou, mas sempre retornará,
Carrossel do enforcados, profecia de tua desgraça,
Insânia nas alturas, e mais desgraça. (…)”

“Uma tarde cuja noite se tornou algum resíduo amortalhado. (…)”
“Nós temos em comum este corpo que nos trai. (…)”
“Tinha de ser o caos. (…)”

“Chovia no caminho de tabuas,
Ao pé da escada do pátio a lama cheirava bem
E a infância mostrava as suas vísceras. (…)”

“Ignoro se tu és capaz de voltar.”

“O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem, (…)”

“Agora eu compreendo as tuas passagens.
Aos quinze tu pegaste corpo (…)

“Quantas vezes o pai te aturdiu no rosto e te cuspiu
Por cresceres apetecendo tanto aos outros… (…)”

“E verás em ti a emoção de uma outra face. (…)”

“E tudo o que amas com fervor
“Reside no absoluto esquecimento do passado. (…)”

“Chegamos ao extremo do caminho
Aonde ninguém vai sem antes dar-se por vencido. (…)”

“Diz que uma febre se esconde
No seio do próximo inverno, (…)”

“O inferno esteja contigo
No dia em que teu pai morrer (…)”

“Os falsos poetas contemporâneos, (…)”
“Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, (…)”
“Estamos em ti sempre que te ausentas. (…)”
“Que a chuva descia pelos seus tentáculos d’água (…)”
“Era uma pepita de sangue (…)”
“Tudo o que era nosso nos foi tirado.”

“Mas algo ainda permanece, (…)”
“Penumbra da nossa própria sombra (…)”
“Derramada sobre o chão, (…)”

“Sentinela dos teus vários descendentes, (…)”
“As semanas despendidas à vara e a remo (…)”
“Um desvão onde guardar minha ansiedade. (…)”

Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. É autora de sete livros de poesia publicados pela editora Iluminuras, São Paulo – Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva Alvorada (2010), Amor e depois (2012) – e um, o mais recente, Tempo de Voltar (2016), pela editora Ardotempo, Porto Alegre.

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