Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 23 – A viúva

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s teus músculos vão começar a contrair-se. Um processo que se prolonga por dez a vinte minutos. Não sentirás os músculos depois disso. Como se o teu corpo estivesse morto. Morto. Como se alguém tivesse desligado um interruptor. A única coisa que te parece funcionar é o cérebro. Durante esses dez ou vinte minutos irás tentar perceber o que fizeste. Irás pensar em todas aquelas vezes em que poderias ter voltado para casa. Deixar este lugar. Esta cidade maldita. Irás pensar na tua casa. Lá longe. Naquela ilha das filipinas. E como um barco que procura abrigo numa tempestade tentarás em vão combater a dormência. Porque já não tens enseadas. Nem uma enseada. Estiveste aqui a viver como uma clandestina. Mudaste de passaporte cada 5 anos. E, embora a paralisia se vá tornar completa a tua mente irá permanecer completamente acordada. Desta vez com um clareza especial. Procuras a razão de tudo isto. Porque estás aqui presa nesta cadeira. Tu que em toda a tua vida não passaste de uma empregada de bar. Que o mais ultrajante que fizeste foi aquele encontro louco com um homem que reconheceste mais tarde ter-se tornado político. Pois é exactamente por causa disso. Mas pensas. Não há nada. Nem por um momento pensaste em ir à polícia fazer queixa das agressões daquela noite. Não há nada. Nada foi provado. Tu esqueceste e acreditas que ele também esqueceu. Durante esses dez ou vinte minutos não irás conseguir entender todos os detalhes daquilo que eu vou dizer ou fazer. Mas tudo bem. O que importa é que retenhas uma coisa apenas. Estás aqui porque falhaste. Falhaste ou em tornar aquele homem feliz ou porque te intrometeste numa relação que ele poderia ter retomado se tu não tivesses acontecido. Para qualquer das coisas falhaste. Foste leviana. O que me importa é que falhaste. E que as tuas acções alteraram o curso de vida de quatro pessoas. Esta é a oferta da tua redenção. Vocês os católicos acreditam nisso não é? De acordo com os desejos da tua religião na redenção dos teus pecados eu vou cumprir esse destino. Eu sou a “viúva” e a minha missão é voltar a trazer ordem ao mundo. Por isso tenho que te retirar deste mundo. Porque ainda existe uma possibilidade de eu conseguir repor alguma ordem. Vou dar-te uma morte indolor. Pelo menos fisicamente. Mas não será instantânea. Será lenta. Uma morte lenta. 18816P16T1-B

Mesmo que a felicidade possa acabar. Tens que perceber que a felicidade não é uma coisa oferecida. E isto não é um trabalho pedido por alguém. É apenas, se quiseres, um negócio meu com o teu passado e com o meu passado. Sabes que tenho dois filhos. Um acompanhei durante quase toda a vida mas o primeiro… O primeiro foi uma menina. Tinha 16 anos e tive que a abandonar à porta de uma clínica em Cantão. Estávamos no ano de 1992. Tu deves andar pela mesma idade não? Quantos anos tens hoje? 57? 55? Quantos anos tinhas em 2016 quando foste para a cama com aquele homem que estava sempre deprimido naquele bar onde trabalhavas? 24? 22? Ou és mais nova? E perguntas tu o que tem isso tudo a ver agora em 2049? Passado tanto tempo. Apesar disso eu sei que ainda existe uma possibilidade de, passado o pânico, começares a perceber a razão de tudo isto. É que, na realidade, isto, esta punição que te imponho, é por amor. Pelo amor à filha que perdi. Na esperança que ela se possa reencontrar. Que possa reencontrar o homem da vida dela. Sim. É verdade. Aquele homem com que foste para a cama. Ela estava apaixonadíssima. E tu… Tu que fizeste? Intrometeste-te e quebraste o fio do destino. Vou-te dizer que tinhas duas hipóteses. Ou não te teres metido com ele ou teres feito com que ele desaparecesse contigo para as Filipinas. Poderias até ter mudado de cara. Ele mudou de cara muitas vezes. Eu, por exemplo, não me oponho à ideia de perder a identidade. Não estou particularmente vinculada ao nome ou ao rosto e não tenho nada mais a perder no passado. É por isso que hoje irei repor o destino. A redefinição do propósito da minha vida. Esta é a única coisa que me importa e a qual eu tenho ansiado. Estranhamente, a única coisa que realmente importa. Também eu disse muitas vezes para mim própria: “estou assustada… não quero ficar sozinha”.

Mas não. A solidão não é uma opção. É um dado adquirido. Houve uma vez que assassinei um líder de um grupo das tríades. Também tive que desaparecer. Mudar de rosto. Mudar de nome. Mudar de estilo de vestir. Mas a única coisa que quis realmente alterar foi o tamanho dos meus seios. Eram pequenos e tristes. Foi um descontentamento inabalável ter chegado a uma certa idade com aquela forma e tamanha de seios. Muitas vezes me ocorreu se a vida teria sido diferente se por acaso tivesse tido seios maiores. Se a vida teria sido mais serena. Mais normal. Por isso quando tive que mudar de rosto e de nome vi uma oportunidade para os aumentar. Esse foi o meu mais forte desejo de mudança. Uma certa necessidade de me sentir mais desejada. Uma estupidez pensarás tu. Tu que tens uns seios excelentes. Imagino que ao ver os teus seios aquele homem tenha perdido o controlo de si mesmo. Em contraste com os seios da minha filha que muito naturalmente seguiam a forma e tamanho dos meus. Mas sabes o peito de uma mulher não é um bocado de massa. Não é um ingrediente para ter melhor sexo. O exagero com que tu provavelmente deixavas ver um pouco mais foi a tua falha inicial. Sabes que o curioso em mim é que quando aumentei os meus seios tudo mudou. Não me tornaria mais numa irreflectida. E o meu trabalho, enquanto assassina profissional, refinou-se. Tornei-me numa espécie de fantasma que ninguém conhece e capaz de levar uma vida dupla. Antes tremia com tudo. Tremia quando um homem me tocava na mão. Mas a partir daquele momento foi como se tivesse destinado a mim mesma um deserto. Porque já não tinha mais nenhum desejo de mudança. E sem desejo veio o deserto. O deserto do corpo. Até se tornar um deserto ressequido. E não houve mais amor.

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