O sonho ditatorial de Erdogan

“As an authoritarian leader, Erdogan maintains absolute control over the country. This is why he wants to exterminate the Hizmet Movement, the biggest obstacle on the way to build his own regime. If Turkish people choose to go with Erdogan, will that trigger chaos in Turkey? Well, systems are built into the fabric of nature. That is, while things seem to tend toward chaos, what really happens is that one system evolves into the next. In that case, we can predict that it wouldn’t be a democracy.”
Hungry for Power: Erdogan’s Witch Hunt and Abuse of State Power
Aydogan Vatandas

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s militares na Turquia desempenham um papel fundamental desde a proclamação oficial da República da Turquia a 29 de Outubro de 1923, como sendo oficialmente a sucessora do Império Otomano, extinto a 1 de Novembro de 1922. O pai da nova nação foi Mustafa Kemal Ataturk, um militar que sempre foi visto como o garante dos valores fundamentais do país, como os conceitos de nação, democracia, laicismo e ordem. A Turquia, infelizmente, é um país acostumado a golpes militares. A jovem nação turca, viveu três golpes de Estado, em menos de um século de existência. O duvidoso pronunciamento militar eleva esse número para um total de cinco sublevações.
O primeiro deu-se em 1960, quando o general Cemal Gürsel, revoltou-se contra o governo de direita que foi acusado dos males que o país padecia e da sua submissão aos Estados Unidos e crise de pobreza da população. Os líderes do golpe, que poderiam ser considerados seguidores de Kemal na sua vertente mais moderna, derrubaram o governo e formaram uma assembleia para redigir uma nova Constituição, a de 1961, considerada a mais progressiva da história da Turquia. Após o golpe, retiraram-se e transferiram de novo o poder para as forças políticas. Todavia, julgaram e executaram os antigos governantes.
O segundo golpe, considerado suave, deu-se em 1971. Os militares naquela época, não optaram pela força, mas pelo envio de cartas aos membros do governo advertindo-os da situação, tendo a 12 de Março de 1971, o Chefe do Estado Maior, feito ao então primeiro-ministro, um verdadeiro ultimato e de novo, a petição de rasgado cariz kemalista, exigia em particular, a formação no quadro dos princípios democráticos, de um governo forte e credível, para neutralizar a situação anárquica que se vivia e que inspirado nas ideias de Ataturk, implementasse as leis reformistas previstas pela Constituição. Se as exigências não fossem atendidas, o exército deveria exercer o seu dever constitucional.
O golpe foi pacífico e a advertência derrubou de novo o governo, tendo sido empossado rapidamente um novo governo que concordou em cumprir, as reformas exigidas pelos militares. O terceiro golpe de Estado foi em 1980, seguindo a triste tradição de uma rebelião militar em cada década. O golpe foi liderado pelo general Kenan Evren, e as suas consequências foram muito piores para o povo turco, uma vez que compreendeu a instauração de um breve, mas repressivo regime militar por três anos. A grave crise e a proliferação de grupos fanáticos religiosos, e de extrema-direita e esquerda, que tinham causado numerosos mortos nas ruas foram os responsáveis, tendo os militares de intervir de novo.
O golpe deu-se a 12 de Setembro de 1980, e foi o mais sangrento da história do país, dado que cento e cinquenta mil pessoas foram detidas, praticaram-se assassinatos e muitas pessoas desapareceram, sem nunca ter havido um esclarecimento. Existe um véu negro e silenciado que cobre a realidade desses acontecimentos. Além da dura repressão, o golpe produziu a Constituição de 1982. Apenas há cinco anos, os turcos puderam avaliar os graves acontecimentos do golpe, e em 2010 foi eliminada a lei que protegia os golpistas, incluindo o general Evren, que foram julgados e condenados a prisão, em 2014. A 30 de Junho de 1997, houve uma intervenção política sem golpe.
O presidente Erdogan, após ter sido eleito, nas eleições realizadas a 10 de Agosto de 2014, com 54,7 por centos dos votos e tomado posse a 28 de Agosto de 2014, mudou-se para um palácio, com mais de mil quartos, em Ancara. Tal gesto de ostentação está em conformidade com a vaidade do líder turco de se tornar uma espécie de novo sultão. Durante os anos que exerceu o cargo de chefe de governo, impulsionou uma perigosa islamização do país e aprovou todo o tipo de legislação, para transformar a saudável democracia secular, num regime cada vez mais conservador, e oposto aos valores e tradições ocidentais, afastando a Turquia de uma possível adesão à União Europeia (UE) e que os líderes europeu não têm sabido ou querido ver. O presidente Erdogan pretendia ir ainda mais longe nas suas desvairadas ideias, e tentou emendar a Constituição, de forma a adoptar um regime presidencial, que lhe permitisse deter plenos poderes executivos. Todavia, apesar dos esforços, o sonho de Erdogan para emular os monarcas Otomanos desapareceu, após o resultado das eleições legislativas de 7 de Junho de 2015.
Ainda que a sua formação política e o governante ‘Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, sigla na língua turca) ”, tenham ganho as eleições com 40,9 por cento dos votos, a perda da maioria absoluta, depois de treze anos de governo, constituiu um recuo, que o impediu de realizar as desejadas reformas, como a da Constituição. Tratou-se de uma votação punitiva por parte das amplas camadas sociais, preocupadas com os desvios autoritários de Erdogan. As manifestações massivas de indignação no emblemático Parque Gezi, em Istambul, em 2013, tinham mostrado anteriormente como franjas da sociedade, sobretudo de jovens, minorias étnicas e classe média instruída das grandes cidades, estavam dispostas a enfrentar o regime.
A grande parte desse descontentamento foi capitalizada nas eleições legislativas pelo partido pro-curdo, “Partido Democrático do Povo (HDP, na sigla em língua turca) ”, que pela primeira vez teve assento no Parlamento. Apesar da desvantagem que previa a necessidade de atingir o limiar de 10 por cento dos votos para conseguir representação, e o facto do problema curdo ser desde há décadas um dos temas mais espinhosos do país, o HDP conseguiu 13 por cento dos votos, em grande parte, devido ao facto de ter polido o seu carácter nacionalista curdo, para converter-se numa força de esquerda muito sensível aos problemas das minorias. Os votos no HDP foram decisivos para fazer descer do cavalo da maioria absoluta, o partido de Erdogan. O cenário dessas eleições mostrou a necessidade de uma coligação governamental, ou um governo de minoria, condenado a fazer acordos contínuos, algo que seria muito saudável, para conter o autoritário AKP.
O mesmo fenómeno de reislamização estende-se por toda a região e a revolta das pernas inundou as redes sociais da Argélia e Tunísia, numa campanha em que milhares de mulheres mostraram as suas pernas, como apoio a uma estudante argelina que não pode licenciar-se em Direito, porque um guarda impediu o seu acesso ao exame, alegando que usava uma saia muito curta. A instrumentalização política da religião é extremamente preocupante, como a existente na Turquia, polarizando a população que durante décadas tem convivido com parâmetros seculares muito saudáveis. Tendo-se revelado infrutíferas, todas as tentativas para se conseguir um acordo político que permitisse um governo estável, o presidente Erdogan marcou novas eleições legislativas para 1 de Novembro de 2015, tendo o seu partido, o AKP, conquistado a maioria com 49 por cento dos votos, obtendo a maioria no Parlamento, com trezentos e dezasseis assentos da totalidade dos quinhentos e cinquenta assentos, tendo o HDP recuado, passando de 13,1 por cento em 7 de Junho de 2015, para 10,7 por cento das intenções de voto.
A 15 de Julho de 2016, uma parte do exército turco parece ter tentado um golpe contra o governo do Presidente Erdogan, que exercitou tomar o controlo do país. As fontes presidenciais negaram a perda de controlo da situação e afirmaram que não tolerariam as tentativas de minar a democracia. O exército decretou o toque de recolher obrigatório em todo o país e a imposição da lei marcial. Os militares revoltosos num comunicado, reprovado pelo governo, argumentaram que agiam para manter a ordem democrática, os direitos humanos e o Estado de Direito. Os militares revoltosos afirmaram ainda, que um Estado de Direito Democrático e secular, estava a ser corroído pelo Presidente Erdogan, que apelidam de traidor. Defenderam a criação de um “Conselho de Paz” para garantir a liberdade dos cidadãos, independentemente da religião, raça ou língua.
As forças militares revoltosas ocuparam pontos estratégicos, como o edifício do Parlamento, que foi cercado por tanques e tomaram algumas instalações governamentais, a sede do partido de Erdogan, a televisão pública e os aeroportos. Os tanques controlaram o acesso ao Aeroporto de Ataturk, em Istambul, onde todos os voos foram suspensos. Os tanques tomaram também, posições nos arredores do Parlamento. Após a meia-noite, os tanques dispararam e os helicópteros atacaram a sede dos serviços secretos na capital do país, tendo um avião de caça derrubado um helicóptero utilizado pelos insurgentes. O Presidente Erdogan exortou o povo a resistir à tentativa de golpe de Estado, devendo ocupar as praças do país para dar ao exército a resposta necessário, pois o golpe não teria sucesso e seria frustrado cedo ou tarde.
O Presidente Erdogan de férias regressou a Istambul, cabendo ao primeiro-ministro controlar a situação que não poderia prejudicar a democracia, apelando à calma e advertindo que os responsáveis pagariam um alto preço, chamando o povo a combater a sublevação, caso a situação se agravasse. Após horas de confusão e agitação, com as duas facções das forças armadas digladiando-se, os seguidores do Presidente Erdogan escutaram o chamado do seu líder, e as praças e ruas das principais cidades do país, começaram a encher-se de multidões contrárias ao golpe. Os militares revoltosos começaram a sentir-se sem apoio e duvidaram do sucesso do golpe. Os seus presságios confirmaram-se e a maioria dos revoltosos desiste do seu intento e começou a entregar as armas.
O avião do Presidente Erdogan aterrou em Istambul e foi recebido por milhares de seguidores, afirmando aos meios de comunicação social que os implicados no golpe pagariam pelas suas acções, anunciando uma purga nas forças armadas para acabar com aqueles que não suportam uma Turquia unida. Após horas de incerteza, as forças armadas leais ao Presidente Erdogan dominaram a intentona, e iniciou-se uma monumental purga contra todos os responsáveis e apoiantes da tentativa de golpe. O saldo do golpe, que foi unanimemente condenado pela comunidade internacional, foi de duzentos e sessenta e cinco mortos, sendo cento e quatro mortos membros das forças armadas que se revoltaram e mil quatrocentos e quarenta feridos. O governo turco no seguimento da tentativa de golpe de Estado iniciou uma perseguição, tendo sido presos e suspensos de funções sessenta mil pessoas.
O governo prendeu treze mil militares, cerca de mil e seiscentos polícias e mais de dois mil e cem magistrados. As contas revistas e tendo a Turquia um poderoso exército, sendo a segunda potência militar no quadro da NATO, com um exército, força área e marinha eficaz, não se vislumbra a possibilidade de qualquer tentativa de golpe de Estado com um reduzido número de revoltosos, sem apoio da maioria do exército, marinha e força área, e apenas usando quatro helicópteros, que facilmente seriam todos abatidos por um só avião de combate. A realidade do acontecido não permite avaliar a situação com clareza, dado o pouco que transpareceu e se conhece, leva acreditar que tudo não passou de um monumental cenário bem orquestrado pelo Presidente Erdogan, pois foi o único beneficiado com a situação, instaurando a lei marcial, prendendo, afastando e suspendendo de funções todos os seus opositores, sem julgamento e processos disciplinares, dando-lhe finalmente o poder absoluto para alterar a seu bel-prazer a Constituição, formalizar o seu apetite devorador de poder, suspendendo as negociações de adesão com a UE, suspendendo a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e tentando restaurar a pena de morte, tornando-se no novo ditador dos Balcãs.
Face a este sinistro quadro, deve a UE suspender formalmente e de imediato todas as negociações com a Turquia e a NATO convidar a sair da organização, por violação grave dos princípios da democracia, das liberdades individuais e do respeito pelo direito, subjacentes ao Tratado do Atlântico Norte, assinado em Washington, a 4 de Abril de 1949.

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