Piropos

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]arte do piropo é extensa, normativa em certos contextos culturais e bastante praticada nas ruas de muitas cidades. Os nossos passeios citadinos são muitas vezes acompanhados de umas bocas aqui e ali. De quem? De quem não conhecemos.
O piropo acompanha-se de uma apropriação de um extenso espaço físico e mental que interfere com o das outras pessoas. Sempre me perguntei sobre a utilidade do piropo aleatório e das tentativas de atenção masculina. Há quem acredite que é uma forma genuína de elogiar o outro ou que faz parte do jogo de sedução… Mas se alguém conseguiu um encontro romântico a quem gritou ‘Ó estrela, queres cometa?’, por favor que me diga, porque terá activado processos psicossociais que, para mim, seriam impossíveis de concretizar.
Quando foi formalizada a criminalização do ‘piropo’ (até três anos de prisão), em Portugal, em Dezembro do ano passado as opiniões dividiram-se. Falou-se de um muito citado ‘histerismo feminista’ e de uma falta de prioridades da agenda socio-política do país. Vale a pena frisar que a discussão sobre o piropo foi provavelmente uma grande vantagem de toda a polémica que causou. O que é que é criminalizado, afinal? O que é um piropo ofensivo? A preocupação está nos tão desagradáveis piropos de teor explicitamente sexual como ‘comia-te toda’, que de pouco ou nada têm de inocentes. Palavras, leva-as o vento, mas não tanto. Em Portugal, especialmente, a partir do momento que se começa a mostrar um corpo de mulher, adolescente, enquanto ganha forma, somos introduzidas ao grande mundo dos comentários desagradáveis por gerações e gerações de homens. Porque ‘piropar’ não é actividade de poucos, mas de muitos. Diria até, é um reconhecido hobby para tantos que se sentam num jardim para observar a ocasional pessoa e mandar boquinhas totalmente desnecessárias – e ofensivas.
A ofensa tenta ser diminuída atribuindo alguma responsabilidade a quem recebe o piropo. Há a expectativa de uma reacção, quando a maior parte das vezes tenta-se mostrar indiferença e tenta-se fugir daquela situação. Isso não quer dizer que uma pessoa não se sente invadida e ofendida. Mas agora que há reconhecimento legal, talvez comecem a surgir mais reacções e mais denúncias. Porque se há uma cultura onde comentários sexualmente intrusivos fazem parte do dia-a-dia, até que ponto a verbalização se torna acto? Esta não é de todo uma lei desnecessária, mas também não resolve todos os problemas de desigualdade de género que primam a legitimidade pela violência verbal e física contra as mulheres. O piropo pode ser uma forma de assédio, e é isso que se tenta criminalizar.
É claro que uma tentativa de mexer com o status quo e de desafiar certas ideias pré-concebidas (i.e. mandar um piropo é OK e é elogioso) reacende conflitos ideológicos (porque ser feminista, aparentemente, é de um radicalismo extremo). Mas o que me faz impressão é que narrativas onde são expostas histórias de alto desconforto são totalmente descartadas sem qualquer conhecimento de causa. Ora uma boa experiência social: vestir homens de mulheres, pô-los de mini-saias a andar por aí sujeitos a assédio, só porque sim. Afinal, que raio ainda é preciso para criar empatia e perceber que isto é um problema? Isto são coisas que prendem e estrangulam a forma como nos sentimos em relação a nós próprios e ao que podemos fazer. Não somos coitadinhas porque ouvimos coisas desagradáveis, nem heroínas se oferecemos pancada de volta. Isto nem sequer deveria ser um problema. Simples.
Há lugares piores que outros, isso vos garanto. Usar uma saia acima do joelho no Brasil foi das experiências mais piropo-assustadoras que alguma vez já tive – que jurei nunca mais repetir. Senti-me objectificada, desconfortável e com medo. Se nos direccionam comentários hiper-sexualizados como perceber que não passam só disso?

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