Ajuste de contas

Chatwin, Bruce, Na Patagónia, Quetzal Editores, Lisboa,1989
Descritores: Literatura Inglesa, Literatura de Viagens, Literatura de Aventuras, Literatura de Memórias, 286 p.:23 cm, tradução de Jose Luis Luna.
Cota: 821.111-992 Cha

[dropcap style=’circle’]B[/dropcap]ruce Charles Chatwin, nasceu em Sheffield no dia 13 de maio de 1940, vindo a falecer em Nice a 18 de janeiro de 1989. Bruce viveu a sua infância em West Heath, nas West Midlands, em Birmingham, onde seu pai era advogado, e estudou no Marlborough College, no Wiltshire.
Depois de deixar o Marlborough College em 1958, Chatwin mudou-se para Londres, a fim de trabalhar como porteiro no departamento de obras de arte do leiloeiro Sotheby’s. Graças à sua apurada acuidade visual, tornou-se depressa um dos peritos da Sotheby’s em particular no domínio da arte impressionista. Acabaria por ser nomeado, mais tarde, director da empresa.
No final de 1964, Chatwin começou a padecer de problemas de visão, parecendo-lhe que isso deveria ter relação com a análise detalhada das obras de arte. Foi-lhe diagnosticado estrabismo latente e recomendado um período de descanso de seis meses. A conselho do seu oftalmologista, viajou até ao Sudão. No regresso, Chatwin desinteressou-se do mundo da arte, voltando agora a sua atenção para a arqueologia, pelo que deixou a Sotheby’s no início do Verão de 1966. Em Outubro do mesmo ano, matriculou-se na Universidade de Edimburgo para estudar arqueologia.  No entanto, apesar de ter ganho o Wardrop Prize pelo melhor projecto de primeiro ano, achou o rigor do estudo académico da arqueologia muito enfadonho, tendo permanecido apenas dois anos na cidade e abandonando a Universidade sem se licenciar. Em 1972, Chatwin foi contratado pela Sunday Times Magazine como assessor para os temas de arte e arquitectura. A sua contribuição para a revista permitiu-lhe cultivar as suas competências de narração e viajar para escrever artigos sobre temas como emigrantes argelinos ou a Grande Muralha da China e ainda entrevistar personalidades tão diversas como André Malraux em França e Nadezhda Mandelstam na União Soviética. Nadezhda Mandelstam foi casada com o grande poeta russo Ossip Mandelstham, fundador do acmeísmo, sendo ela própria uma escritora importante, autora da célebre memória sobre os últimos anos do marido no campo de concentração estalinista, onde faleceu, memória essa que ficou imortalizada pela frase, Esperança contra esperança. 21716P14T1

Ajuste de contas

Em 1972, Chatwin entrevistou a arquitecta e designer Eileen Gray, então com 93 anos, no seu atelier de Paris, onde reparou no mapa da Patagónia, na América do Sul, que ela tinha pintado. “ Sempre quis ir até lá”, disse Bruce. “Também eu”, respondeu ela. “Vá lá por mim”. Dois anos mais tarde, em Novembro de 1974, Chatwin voou para Lima, no Peru, e um mês depois estava na Patagónia, onde se demorou seis meses. Essa viagem resultou no seu livro Na Patagónia (1977), que o lançou como reputado escritor de viagens. Mais tarde, contudo, os residentes da Patagónia viriam a contrariar os eventos descritos no livro de Chatwin. Seria a primeira vez, mas não a última, que conversas e personagens descritos por Chatwin, foram alegadamente ficcionalizados.
Trabalhos posteriores incluíram O Vice-rei de Ajudá (The Viceroy of Ouidah), um estudo ficcional sobre o traficante de escravos Francisco Félix de Souza – que, no livro, é chamado Francisco Manuel da Silva – e as suas actividades no Benim. Para The Songlines, Chatwin viajou até a Austrália no intuito de elaborar a tese de que as canções dos aborígenes australianos são resultantes do cruzamento de um mito da criação, de um atlas e da história pessoal do homem aborígene. On The Black Hill situa-se nas colinas das quintas das fronteiras do País de Gales, descrevendo as relações entre dois irmãos, Lewis e Benjamin, que crescem isolados da história do século XX. O livro ganhou o James Tait Black Memorial Prize. Utz, o seu último livro, resulta da observação ficcional da obsessão que leva as pessoas a coleccionar objectos. Situado em Praga, o romance descreve a vida e a morte de Kaspar Utz, um homem obcecado pela colecção de porcelana de Meissen.
Chatwin estava a trabalhar num conjunto de novas ideias para futuros romances, incluindo um épico transcontinental, provisoriamente intitulado Lydia Livingstone, quando morreu, em 1989. As suas cinzas foram espalhadas perto da capela bizantina de Kardamyli no Peloponeso  — perto da casa de um dos seus mentores, o escritor Patrick Leigh Fermor.

Falar de Bruce Chatwin é convocar o mais importante dos escritores de viagens e trazer aqui o texto Na Patagónia, significa começar pela sua melhor narrativa. A obra não é mais do que “uma viagem comovente pela Patagónia e Terra do Fogo para descobrir que o fim do mundo não existe. E que a aventura recomeça”.
A remota Patagónia, uma terra «no fim do mundo» é habitada por figuras errantes e exiladas, desde gaúchos a foragidos, de mineiros peculiares até aos índios da Terra do Fogo. “Fascinado por este sítio desde a infância, o autor atravessa toda a região, desde o Rio Negro até Ushuaia, a cidade no extremo sul da Argentina e do continente, captando o espírito da terra, da sua história e da sua gente, e conferindo-lhe uma expressão poética e intensa”.
Num escrita prodigiosa, plena de descrições maravilhosas e histórias intrigantes, Na Patagónia narra as viagens de Chatwin através desse lugar mítico e remoto, elaborando ao mesmo tempo narrativas paralelas que tornam o livro inclassificável.
Este livro de Chatwin, livro que é como já disse, mas reitero, a sua obra prima, faz parte do Plano Nacional de Leitura em Portugal e eu considero que se trata de uma óptima escolha. Desde dinossauros até à inesperada Calamity Jane tudo aparece ao longo desta narrativa e sempre de forma surpreendente, para não dizer por vezes hilariante. Calamity Jane, aliás Martha Jane Canary-Burke, foi provavelmente quem mais gostei de encontrar neste livro, dada a minha memória juvenil de livros aos quadradinhos de cowboys, pistoleiros, xerifes, aventureiros, garimpeiros e outros pioneiros americanos. É que se considera, a tradição pelo menos outorga-o, que a Calamidade terá sido casada com Wild Bill Hickok, aliás James Butler Hickok, que é nem mais nem menos que o celebérrimo, pelo menos para mim, xerife de Kansas e Nebraska; que a dada altura se juntou ao não menos célebre Bufalo Bill, aliás William Cody, que os índios designavam por Pa-e-has-ka, ou seja o ‘Cabelos Compridos’ e que o acompanhou até nos seus espectáculos por circos, rodeios e feiras. Que Búfalo Bill fosse o Pa-e-has-ka, isso a mim sempre me provocou alguma perplexidade e confusão, ou mesmo ciúme, por interposta pessoa, claro, pois Kit Carson, não tinha os cabelos menos compridos que Búfalo Bill ou que o próprio Wild Bill Hickok, e até foi casado com uma índia de nome Waa-nibe, mas enfim, preferências…
A verdade é que não é bem assim, pois os factos provam que Kit Carson foi demasiado mitificado pela banda desenhada e afinal não tinha aquele ar de cavaleiro romântico, bem pelo contrário, além de que o seu comportamento militar, em particular contra os Navajos, não foi nada de acordo com os valores do heroísmo propagandeado, mas antes de um verdadeiro anti-herói, cobarde e cruel. Por outro lado, e volto a Hickock, também se terá celebrizado por se envolver amiúde em tiroteios e duelos, explorados pela imprensa sensacionalista, e terá morrido, ao que consta, durante um jogo de poker num saloon em Dakota o que acrescenta uma nota mítica e romântica à sua vida e à sua lenda. Ao que parece, quando foi assassinado tinha na mão um par de ases, uma dama e um par de oitos, mão essa que ficou para sempre conhecida como a Mão do Homem Morto.
Que seja desculpado este austero ajuste de contas tardio com os meus heróis juvenis; se a vingança é um prato que se serve frio a verdade é um prato que se prova tarde, portanto sempre um pouco requentado. Aproveito para confessar que a desilusão foi completa pois os meus maiores ídolos que na banda desenhada eram desenhados de uma certa maneira não tinham nada a ver com a realidade. É o caso de Davy Crockett e Jim Bowie que nos livros aos quadradinhos nos apareciam como heróis solitários, abnegados e amigos dos índios e depois afinal estiveram todos ao serviço do exército americano, do general Custer e de outros colaborando no enorme genocídio hoje sobejamente conhecido e documentado. Parece que, no caso destes dois, morreram ambos na célebre batalha de Álamo, às mãos dos Navajos, justamente. Haja Deus! 21716P14T1
Na minha galeria salva-se Matt Dillon, o Marshal de Dodge City, mas Matt Dillon nunca existiu e a sua vida resulta da criação ficcional de John Meston representada por William Conrad na rádio e James Arness, na televisão. Matt, era assim um herói à medida de um público tal como Roy Rogers por exemplo ou Buck Jones, o xerife de Alkaly City. Mas foi talvez o herói americano do Oeste mais à minha medida. Tanto na rádio como na televisão, Matt Dillon permaneceu firme, honesto, absolutamente incorruptível, e dedicado à causa de impor a lei genuína na região de Kansas, à época verdadeira fronteira entre a América “civilizada” e as pradarias violentas e selvagens do oeste americano. Ele raramente agia de forma impetuosa, além de que era invariavelmente justo e imparcial no exercício das suas funções, mesmo quando era necessário subordinar os seus pontos de vista pessoais relativos a pessoas ou factos. Eu devo confessar, porém, que só conheço o Matt Dillon, dos livros aos quadradinhos, onde penso que ele aparece ainda mais genial, embora e muito a meu gosto, mais sombrio, mais pessimista e sobretudo mais triste. Ele é um dos alter egos da minha adolescência juntamente com o Lobo das Estepes de Herman Hess.
Voltemos a Chatwin e ao Na Patagónia pois estes não desiludem. O livro é um obra que estimula intensamente a nossa sede de aventura, o nosso imaginário juvenil, a vontade de partir à descoberta no fim de contas de nós mesmos. E no caso de Bruce Chatwin isso é muito evidente uma vez que o que desencadeou a viagem exploratória foi o facto de o nosso escritor ter encontrado um pedaço de dinossauro no espólio do avô que também teria andado, quando era jovem, pelas Terras do Fogo, no extremo sul do Continente Americano. Bruce Chatwin encontrou assim esse espólio no espólio do avô e a partir dessa pesquisa tudo se vai desenrolar para nosso gáudio de modo surpreendente, sempre misterioso e volto a insistir, hilariante. Chatwin manipula como ninguém o espírito da viagem, o espírito moderno e contemporâneo do desassossego. O bom gosto e o culto agónico do fait divers, fazem dele um mestre no género. Na Patagónia lê-se com um sorriso rasgado e uma lágrima ao canto do olho. O que é que se pode esperar mais de um livro de viagens que é ao mesmo tempo um livro de memórias e de aventuras.
Como a Patagónia e as Terras do Fogo sempre foram um lugar dilecto dos aventureiros da América do Norte, o que é muito compreensível, o autor vai cruzar-se imaginariamente com as figuras mais improváveis da mitologia americana, conseguindo contudo tornar as suas memórias verosímeis. A dada altura a propósito de Evans e Wilson, dois conhecidos assassinos que terão matado entre outros Llwyd ApIwan, conhecido pioneiro galês em terras da Patagónia, onde foi engenheiro, agrimensor, e explorador incansável, muito ligado à colonização galesa na Argentina, Bruce Chatwin põe-nos no encalço de Butch Cassidy e Sundance Kid. É que Wilson, que era mais novo que Evans, mas melhor com as armas, teria uns 25 anos e media 1,75 e era esbelto, de cabelos claros, queimado do sol e nariz curto e recto e que para cúmulo caminhava com o pé direito voltado para fora e finalmente que, tudo leva a crer,  tinha sido companheiro de Duffy (Harvey Logan) na Patagónia e em Montana. Este Wilson terá estado envolvido num assalto a um comboio; o que, para Chatwin, só podia ter sido o assalto ao Comboio Wagner, do dia 3 de Junho de 1901. Daqui parte, ele, para uma elocubração fantástica sobre a parte final da vida dos dois aventureiros lendários, Butch Cassidy e Sundance Kid, imortalizados no filme homónimo de George Roy Hill por Paul Newman e Robert Redford. Agora o que eu não esperava era vir a encontrá-los nas páginas desta obra de Chatwin, mas como neste livro tudo é possível… depois de Calamity Jane só mesmo Butch Cassidy e Sundance Kid.
Os pormenores são, como se desconfia, de ir às lágrimas e é aí que a meu ver reside o génio do nosso narrador. A mistura entre o documental ficcionado e o ficcional documentado excessivamente, confere à narrativa um sabor a incredulidade extasiada que é deveras surpreendente, acreditem.

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