Segredos da existência

Roy, Arundhati, O Deus das peguenas coisas, ASA, Porto, 1999
Descritores: Literatura, Índia, 301 p., ISBN: 9724119378 Cota: 821.21-31 Roy

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]elo e comovente, “O Deus das Pequenas Coisas” é a história de três gerações de uma família de Kerala, Índia. Os gémeos Estha e Rahel, a sua mãe, avó, tio, prima e Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. Mas, numa noite de Junho, os fantasmas regressam à casa da História.
A história começa no estado de Kerala, no Sul da Índia, onde coabitam grandes fés: cristianismo, hinduísmo, islamismo e marxismo. Ali, em 1969, na estrada para Cochim, um Plymouth azul fica retido no meio de uma manifestação de trabalhadores. No carro estão os gémeos Rahel e Estha, então com sete anos – e assim começa a sua história. Os dois crescem entre caldeirões de geleia de banana e pilhas de grãos de pimenta, na fábrica da avó cega. Armados com a inocência invencível das crianças, tentam inventar uma infância à sombra da ruína que é a sua família; a mãe, a solitária e adorável Ammu, o delicioso tio Chacho, a inimiga Baby Kochamma e o fantasma de uma mariposa que um dia pertenceu a um entomologista imperial. Rahel e Estha descobrem que As Coisas Podem mudar num só dia, que as vidas podem ter o seu rumo alterado e assumir novas, e feias, formas. Descobrem que elas podem até deixar de ser para sempre.
Aqui vai um cheirinho delicioso de O Deus das Pequenas Coisas:
“Rahel chega a Ayemenem numa tarde chuvosa de Junho – as monções começaram. Maio já vai longe e o cheiro dos frutos maduros também. A vegetação parece subir enroscada nas paredes quando Rahel entra em casa, uma casa vazia com «a varanda da frente deserta». «O Plymouth azul-celeste com barbatanas cromadas ainda estava parado lá fora e Baby Kochamma ainda estava viva lá dentro».
Rahel regressa a casa, vinda da América, para uma viagem pelo passado, as memórias que marcaram para sempre a família que a amou e a desprezou. Para lembrar a mãe, Ammu, que amava de noite o homem que os filhos amavam de dia – Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. E para reencontrar Estha, o irmão gémeo – «gémeos biovulares; ‘dizigóticos’, chamavam-lhes os médicos» –, que se refugiou numa pesada mudez desde que «tudo» aconteceu”.
Assim começa O Deus das Pequenas Coisas, …
Mas quem é esse Deus das Pequenas Coisas? “O deus das pequenas coisas é a inversão de Deus. Deus é uma coisa grande e está sempre numa posição de domínio e de controle. O deus das pequenas coisas pode ser a forma como as crianças vêem as coisas ou a vida dos insectos nos livros, os peixes ou as estrelas – é um não-aceitar do que pensamos ser as fronteiras dos adultos”, explica Roy.
Em resumo, O Deus das Pequenas Coisas é portanto a história de três gerações de uma família da região de Kerala, no sul da Índia, que se dispersa por todo o mundo e se reencontra na sua terra natal. Uma história feita de muitas histórias. A história dos gémeos Estha e Rahel, nascidos em 1962, por entre notícias de uma guerra perdida. A de sua mãe Ammu, que ama de noite o homem que os filhos amam de dia, e de Velutha, o intocável deus das pequenas coisas. A da avó Mammachi, a matriarca cujo corpo guarda cicatrizes da violência de Pappachi. A do tio Chacko, que anseia pela visita da ex-mulher inglesa, Margaret, e da filha de ambos, Sophie Mol. A da sua tia-avó mais nova, Baby Kochamma, resignada a adiar para a eternidade o seu amor terreno pelo Padre Mulligan. Estas são as pequenas histórias de uma família que vive numa época conturbada e de um país cuja essência parece eterna. Onde só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas permanecem por dizer. O Deus das Pequenas Coisas é uma apaixonante saga familiar que, pelos seus rasgos de realismo mágico, levou a crítica a comparar Arundhati Roy com Salmon Rushdie e García Márquez, e lhe valeu o Booker Prize.
Eu lembro-me da época em que eu próprio descobri a metafísica avassaladora das pequenas coisas e a paixão que passou a acompanhar-me nessa vertigem de nomear e descrever a realidade anódina e anónima, esse mundo que exige a nossa vocação para se tornar real, para existir enfim. Em boa verdade esse é o segredo da literatura no sentido genérico de poiesis. Novalis dizia que quanto mais poético, mais verdadeiro. E é este mundo das pequenas coisas, das coisas aparentemente sem importância que é o mais poético e até o mais autenticamente nosso. Ter acesso a esse mundo, aos segredos minúsculos da realidade é ter acesso aos segredos da existência, aos mistérios do mundo. Toda a grande poesia contemporânea, que é agora sempre uma poética da média rés, explora as criações demiúrgicas dos deuses das pequenas coisas. Arundhati Roy teve esse mérito, o de mostrar, sem equívocos, uma tendência generalizada da arte contemporânea, em particular das artes efabulatórias onde o dizer mais se confunde com o nomear, no sentido literal do verbo que será sempre como dar vida e evidenciar um mundo esquecido, apagado por detrás dos acontecimentos mais espectaculares embora muitas vezes redundantes no seu fulgor.
Vale a pena trazer aqui e agora a panóplia das coisas às quais muitas vezes pouco ligamos distraídos que estamos com as “grandes coisas”, digo-o ironicamente pois a minha vida enriqueceu-se com essas coisas como o cheiro dos frutos ou a memória de como chovia naquele certo dia em que muitas mais coisas aconteceram, grandes e pequenas, mas o que ficou foi a intensidade da chuva, a luz que ao chover se dissipava. As pequenas coisas são também as que por se dizerem impediram que outras se dissessem e ao adquirirem uma eleição votaram outras ao silêncio. Aqui para nós, as pequenas coisas acabam por ser as coisas que a argúcia e a imaginação promoveram e nesse sentido deram vida e é justamente por isso que um escritor é sempre um demiurgo, mas também um iconoclasta e um ser apocalíptico.

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]icenciada em arquitectura, Roy Arhundati nasceu em Kerala, na Índia, em 1961. Cedo se dedicou à escrita de guiões para cinema. O Deus das Pequenas Coisas, que foi publicado em 1997, é o seu primeiro romance e por enquanto o único e com ele a autora recebeu o Booker Prize do mesmo ano. “Este prémio é sobre o meu passado. Não sei se escreverei outro livro. Estou à espera que o barulho na minha cabeça pare”, disse, em várias entrevistas. Apesar de não ter, ainda, escrito e publicado mais romances ou novelas é abundante a sua actividade intelectual como o demonstra a sequência de obras que refiro a seguir:
The End of Imagination. Kottayam: D.C. Books, 1998. ISBN 81-7130-867-8; The Cost of Living. Flamingo, 1999. ISBN 0-375-75614-0. Contém os ensaios “The Greater Common Good” e “The End of Imagination”;
The Greater Common Good. Bombay: India Book Distributor, 1999;
The Algebra of Infinite Justice. Flamingo, 2002;
Collection of essays: “The End of Imagination”;
“The Greater Common Good”; Bombay, 1999;
“The Algebra of Infinite Justice,” Flamingo, 2002. Collection of essays: “The End of Imagination,” “The Greater Common Good,”,  “Power Politics”, “The Ladies Have Feelings, So…,” “The Algebra of Infinite Justice,” “War is Peace,” “Democracy,” “War Talk” e “Come September.”
“Power Politics”, Cambridge: South End Press, 2002;
“Power Politics. Cambridge: South End Press, 2002. 
Foreword to Noam Chomsky, For Reasons of State. 2003. 
An Ordinary Person’s Guide To Empire. Consortium, 2004. 
Public Power in the Age of Empire Seven Stories Press, 2004. 
The Checkbook and the Cruise Missile: Conversations with Arundhati Roy. Entrevista por David Barsamian. Cambridge: South End Press, 2004. 
Introduction to 13 December, a Reader: The Strange Case of the Attack on the Indian Parliament. New Delhi, New York: Penguin, 2006. 
The Shape of the Beast: Conversations with Arundhati Roy. New Delhi: Penguin, Viking, 2008. 
Listening to Grasshoppers: Field Notes on Democracy. New Delhi: Penguin, Hamish Hamilton, 2009. https://pt.wikipedia.org/wiki/Especial:Fontes_de_livros/9780670083794
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