Função Pública | Funcionários falam de ambiente de medo e pressão

Um ambiente de medo e pressão. É assim que alguns funcionários públicos relatam o seu dia-a-dia. Chefes inflexíveis que só ouvem “amigos” prejudicam um local que deveria ser bom. Com consequências graves, é a estabilidade da família que os faz ouvir e calar

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] inegável. Trabalhar na função pública parece ser bastante bom. “Na nossa cultura é normal querermos ir trabalhar para o Governo. Os nossos pais passam-nos essa ideia, que trabalhar na função pública é mais estável, ganhamos mais dinheiro e não há muitos riscos. Não temos de trabalhar muito”, diz-nos Weng, jovem residente de Macau, que, como tantos outros, anseia o momento da publicação dos resultados da candidatura para a função pública. Tem 23 anos e não quer fazer outra coisa. “Quero trabalhar no Governo”, reforça.
Como ela, “quase todos” os seus amigos seguem-lhe os passos. A própria Weng está a fazer aquilo que muitos outros também fizeram. Mas será assim tão bom trabalhar na função pública? Um salário chorudo, horário fixo e leveza na densidade de trabalho serão motivos suficientes para dizer que este é o melhor emprego do mundo?
“É horrível! As pessoas não imaginam o que é trabalhar nos departamentos do Governo. Basta ir perguntar às pessoas, é normal que ninguém queira falar, mas as famílias, a sociedade sabe: não é bom trabalhar na função pública”, responde Ku, funcionário público há 10 anos, que prefere ocultar o departamento onde trabalha.

Silêncio, por favor

Ku começa por explicar que “nem todos os departamentos são maus” mas a realidade mostra que em “quase todos” os sectores registam casos de “abuso de poder”.
“O que reina, entre os funcionários, é o medo. Não podemos dizer nada, não nos é dada a hipótese de expormos as nossas ideias, darmos as nossa opiniões. Já para não falar das queixas. Se o fazemos sofremos consequências, já todos ouvimos histórias dessas e muitos de nós já sentiram as consequências na pele”, continua, afirmando que o próprio é um exemplo disso.
“O meu trabalho é bastante metódico. Escrevo muitos documentos. O nosso sistema informático é antigo, e não há vontade de actualizar, temos de trabalhar com o que há. Não é raro na escrita as vezes darmos erros, normalmente os softwares dão aviso de erro. O nosso não, portanto torna-se ainda mais comum que os documentos possam ter, por vezes, alguns erros. Aconteceu-me comigo, várias vezes. E com os meus colegas. Éramos constantemente repreendidos por uma coisa que podia ser facilmente resolvida. Resolvi apresentar uma sugestão à direcção para instalar um dicionário no nosso software e resolver o problema”, recorda o funcionário público.
A sugestão não foi bem vista pelas chefias que sem tolerância perante o funcionários decidiram atribuir-lhe um castigo, por este ter admitido que errou outras vezes. “Fui castigado, tiraram-me três dias de vencimento alegando que eu tinha errado. Não ouviram a minha sugestão e continuam a acontecer erros. Isso nota-se, por exemplo, nos comunicados à imprensa, ou em qualquer outro documento interno”, aponta, frisando que “fazer o bem quando se têm um chefe que se acha superior e perfeito não adianta”. “É melhor estar calado e deixar a máquina andar sem condutor”, lamenta.

Pressões e tragédia

Com a equipa do HM estão 10 funcionários públicos. Todos eles com relatos mais ou menos graves. O pior caso é a de uma jovem funcionária pública, contada pela boca de Lao, colega de trabalho da vítima. “É muito vulgar os superiores hierárquicos ralharam de forma indiscriminada. Por tudo e por nada, com ou sem razão. A nossa colega estava grávida e todos os dias era alvo de berros e a fúria do chefe. Todos os dias eram berros e mais berros. Muitas vezes lá ia ela para a casa-de-banho chorar. Um dia depois de uma sessão de berros foi para a casa-de-banho uma vez mais, mas demorou muito. Fomos ver o que se passava, estava desmaiada no chão. Infelizmente perdeu o bebé”, relata.
O silêncio invadiu a sala e as caras não pareceram surpresas. “Há muitas histórias como esta”, remata, Cheong, funcionário público com mais de 30 anos de serviço. Leong acrescenta que “seja homem ou mulher, um dia todos cedem e acabam por chorar, de nervos ou de estar farto”.

Amigos à parte

Leong relata ainda situações em que o chefe se torna “altamente inflexível”. “Nós que trabalhamos no terreno sabemos mais do que eles [chefes] e como vamos dar uma opinião ou uma sugestão se eles são inflexíveis? Não querem ouvir? Só se for amigo da pessoa, ou filho de alguém importante”, aponta.
Uma postura de chefe e nunca de líder, os funcionários descrevem um ambiente de pressão laboral. “Todos os dias vamos para o trabalho com medo. Se erramos vamos ouvir berros, é-nos tirado parte do ordenado”, partilha.
Questionados sobre uma possível mudança de trabalho, olham-nos com ar de surpresa. “Não há ordenados como na função pública. Como vamos alimentar as nossas famílias?”, responde Lao.

O “2 5”

Falar para a comunicação social é sempre “um grande problema” e a participação na vida social e política é melhor manter bem longe. Quase todos tinham marcado presença em pelo menos uma manifestação do 1º de Maio. Recordam o ano em que muitos foram de máscaras. “Sabemos que temos consequências se formos para as manifestações”, frisa Leong. Muitas vezes concordam com o que leva as pessoas à rua, mas é melhor ficar a ver, ao longe, para garantir a renovação do contrato de trabalho.
Pior que é isso é método “espião”, mais conhecido por “dois (2) cinco (5)”. “Ás vezes em jantares de trabalho e convívios há um espião, o dois cinco, enviado pelos chefes para tentar saber coisas. Nós pensamos que estamos num ambiente de amigos e até podemos desabafar sobre qualquer coisa, ou criticar os chefes e o espião vai contar tudo. Temos sempre de ter cuidado. Depois fazem-nos a vida negra”, conta um dos funcionários que preferiu não ser identificar.

Influência chinesa

Questionados sobre as possíveis diferenças entre a governação antes e depois da transferência da soberania, aqueles que trabalharam nos dois sistemas não têm dúvidas: “era muito melhor”.
“Com os portugueses podíamos debater assuntos, dar opiniões, havia estímulo, agora não, é mais estilo chinês, ordem e respeito ao chefe”, apontou um dos funcionários que conta com mais de 32 anos de serviço.
Questionado sobre as acusações António Katchi, ex-funcionário público, jurista e docente de Administração Pública no Instituto Politécnico de Macau (IPM), fundamenta a possível mudança de comportamento.
“Depois da transferência do exercício da soberania, Macau continuou a ter um regime político local formalmente semelhante, mas subordinado agora a um regime político nacional estalinista putrefacto, o qual reforçou aqui o poder da sua velha parceira de negócios, a oligarquia local. Tendo em conta este pano de fundo, creio podermos considerar compreensível – o que não significa “aceitável” – a evolução negativa que se registou, quer na faceta liberal do regime político de Macau – que está permanentemente sob ameaça e sofre frequentes facadas -, quer no ambiente interno da função pública”, afirmou ao HM. [quote_box_right]“Ás vezes em jantares de trabalho e convívios há um espião, o dois cinco, enviado pelos chefes para tentar saber coisas”[/quote_box_right]Com a transição o ensino primário e secundário continuou a ser “esmagadoramente dominado por escolas privadas diversas obediências, qual delas a mais conservadora: escolas católicas, escolas protestantes, escolas pró-Pequim, escolas pró-Taipé. Muitos dos alunos saídos dessas escolas foram estudar para universidades da China continental e de Taiwan (e recordemos que Taiwan vivia sob uma ditadura militar fascista até ao início dos anos 90)”.
“Ora, é deste caldo político-cultural que saíram muitas das pessoas que, a partir dos anos 90, começaram a ser apressadamente içadas para os altos cargos da Administração Pública, no âmbito do processo conhecido como ‘localização de quadros’. Algumas outras eram mesmo oriundas da China continental e, de entre estas, uma ou outra vinha directamente das fileiras ou do submundo do Partido ‘Comunista’ Chinês. Estes novos dirigentes, normalmente muito jovens e cheios de vontade de impor a sua autoridade a pessoas mais velhas, mais experientes e amiúde mais qualificadas, vieram substituir pessoas oriundas de Portugal, de onde vinham imbuídas, em maior ou menor grau, dos valores que se tornaram dominantes em Portugal após a Revolução de 1974. A tudo isto acresceu uma especial admiração do primeiro Chefe do Executivo, Ho Haw Wah, por vários aspectos – em geral, os mais negativos – do regime político e da Administração Pública de Singapura. Essa sua admiração, pelos vistos partilhada pela então Secretária para a Administração e Justiça, inspirou o Governo a iniciar uma política indiscriminada de “formação” de funcionários públicos, sobretudo de pessoal de direcção e chefia, em Singapura. Foi como se o farol da Administração Pública de Macau tivesse passado de Portugal para Singapura”, argumentou.

Para nada

As diferenças são então inegáveis, como por exemplo, no apoio à formação. Cheong conta que ele e os seus colegas são obrigados a frequentar formações que em nada lhes são úteis e, sempre, em horários pós laboral.
Este é também um dos exemplos que António Katchi partilha. “(…) Nos anos 90, [os] dirigentes encaravam muito positivamente a decisão dos trabalhadores de tirarem um curso de licenciatura e faziam o possível, dentro dos limites da lei e tendo em conta as necessidades dos serviços, para lhes facilitarem essa acumulação do trabalho com os estudos. A maioria dos actuais magistrados, quer judiciais, quer do Ministério Público, e muitos dos titulares de altos cargos na Administração Pública, beneficiaram desse encorajamento e dessas facilidades. Após a transferência do exercício da soberania, os novos governantes e muitos dos dirigentes da Administração Pública passaram a tentar barrar a ascensão educacional e profissional dos trabalhadores da Administração Pública: não só deixaram de os encorajar, como passaram a dificultar-lhes o estudo por diversas formas – impondo-lhes a prestação frequente de trabalho extraordinário, obrigando-os a frequentar cursos de “formação” inúteis ou de fraca utilidade para o serviço, impedindo-os de sair do serviço um pouco mais cedo para poderem comer e chegar às aulas a tempo e horas, proibindo-os de estudar no local de trabalho mesmo quando não têm nada para fazer, entre outros – , chegando mesmo ao ponto de violar direitos consagrados na lei, como as faltas para exame”, relata.

Mecanismo a caminho

Em reacção, o director dos Serviços de Administração e Função Pública, Kou Peng Kuan garantiu que “criar um bom ambiente de trabalho para os trabalhadores da função pública foi desde sempre uma preocupação do Governo”, daí o Executivo ter apresentado uma proposta para a criação de um mecanismo de tratamentos de queixas dos trabalhadores.
“Este mecanismo serve para fomentar o diálogo entre os trabalhadores e os serviços, resolver atempadamente os eventuais desentendimentos e conflitos entre as partes, criando, deste modo harmonia no ambiente de trabalho”, continuou.
O director explica ainda que o mecanismo prevê a criação de uma entidade imparcial, uma comissão, que “vai acompanhar o resultado do tratamento dos serviços das questões apresentadas pelos trabalhadores, com o objectivo de garantir a justiça e a imparcialidade no tratamento das queixas, e determinar que o trabalhador não pode ser prejudicado em virtude de ter apresentado queixa”.
Compete aos SAFP a formação de recursos humanos para essa averiguação. “O SAFP vai proporcionar formação e orientações aos trabalhadores dos serviços públicos responsáveis pelo tratamento de queixas assegurando um tratamento adequado das queixas, para que, desta forma, seja implementado o mecanismo de queixas e criado um bom e harmonioso ambiente de trabalho”, explicou o director.
“Quer dizer, é o próprio serviço que está a ser acusado que trata da queixa, ou que pede a alguém para tratar da queixa? Não, isto está errado. Este mecanismo de queixas tem que ser efectuado por outra entidade, uma de confiança. Que garanta a segurança do trabalhador. É preciso justiça. O que tem acontecido em Macau, nos seus serviços públicos, é que muitas vezes, quando há um problema a ser analisado, os directores já sabem o que vai acontecer, qual a decisão. Dizem que estão a avaliar mas não”, reagiu Cheong, trabalhador. [quote_box_left]“O que reina, entre os funcionários, é o medo”[/quote_box_left]
Com ou sem mecanismo, no fim, aponta, os mais prejudicados são os cidadãos. “O medo reina na função pública. Eu admito, se vir alguma coisa a acontecer a um colega de trabalho, nunca serei testemunha dele. Tenho medo de represálias e de perder o emprego. Temos medo, temos medo. Quem sofre mais são os próprios cidadãos. Se nós prestamos mal o serviço, como é que vai chegar à sociedade? Pior! O que acontece é que dados errados e informações incorrectas são atribuídas aos cidadãos por causa de todos estes erros e falhas no sistema”, rematou Cheong.

ATFPM recebe 50 queixas por dia

José Pereira Coutinho, presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM), não se mostrou admirado quando confrontado com os casos. “É o prato de cada dia”, afirmou. A associação que dirige, conta, recebe “uma média de 50 casos por dia”. “Os trabalhadores da função pública sofrem muitas pressões desnecessárias, deixou de existir um diálogo honesto de olhos para olhos entre superiores e inferiores. A maioria dos trabalhadores são considerados como máquinas. Isto resulta pelo facto de que as pessoas escolhidas para cargos de direcção, e chefia, terem sido escolhidos sem preparação. Isto porque são, normalmente, amigos de amigos”, acusa. Em reacções ao mecanismo a ser criado, Pereira Coutinho não tem dúvidas: “é inútil”.

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