Não estaremos a esquecer-nos de algo?

Por entre névoas do politicamente correcto, da tolerância e da protecção de minorias, o mundo ocidental parece esquecer-se de algo extremamente importante, algo que resolve muitas das questões existenciais dos dias de hoje. Esquecemo-nos de onde vem o sucesso da forma de vida ocidental que tanto prezamos. Esquecemo-nos do enorme valor do laicismo.
Todos nós já vivemos a opressão religiosa. De Portugal à Dinamarca fomos violentados, queimados e ostracizados. Passámos por tempos onde excomungar era uma terrível ameaça. Mas livrámo-nos disso. Prosperámos porque libertos de conceitos e preconceitos, aprendemos a viver livres e até a respeitar os outros. Escrevemos Tratados da Tolerância e até a Carta dos Direitos Humanos, o único texto realmente sagrado da humanidade. Mas hoje discute-se, como se de repente não soubéssemos, a melhor forma de lidar com os muçulmanos e outros povos que não conseguem distinguir a religião do Estado. Preocupados com eles, coitadinhos, quando devíamos é ter dó por ainda não se terem livrado dos atavismos arcaicos nem perceber que Estado é uma coisa e religião é outra. O problema é também parecermos não saber explicar-lhes nem, tão pouco, lembrar-nos desse facto tão crucial na nossa evolução social recente.
Na Suíça, avançava esta semana o DN, (https://bit.ly/muçuaperto) as autoridades educativas de Therwil, cantão de Basileia, depois de dois estudantes muçulmanos do sexo masculino terem contestado o hábito suíço de dar um aperto de mão aos professores, sancionaram o comportamento pois os estudantes alegaram que, caso o docente fosse do sexo feminino, o costume era contrário às suas crenças religiosas.
Na Alemanha, avança a Russian Television (https://bit.ly/salsichanao), vivem a polémica das salsichas após uma série de escolas, cantinas e enfermarias as terem banido por questões religiosas.
Nos Estados Unidos, orgulha-se a Esquire (!) (https://bit.ly/soldadosikh) que considera, e cito, “uma vitória para a liberdade religiosa” o facto de um soldado-norte americano ter vencido a batalha do turbante alegando, uma vez mais, motivações religiosas para ter uma cobertura capilar diferente da dos demais.
Esta semana, foram várias as vozes a insurgirem-se contra o editorial intitulado “Como chegámos até aqui” do Charlie Hebdo (https://bit.ly/hebdoedita), inclusive a do “The Independent”, um jornal que até tenho em melhor conta. Dizem os recalcitrantes que o Charlie está apenas a incitar ódios contra todos os muçulmanos, um texto inadmissível e desapropriado. Já não “somos todos Charlie”, portanto. Diz o editorial a determinada altura, e cito, “veja-se o padeiro do bairro, que acabou de comprar a padaria que vem substituir a antiga do velhote acabado de se reformar. Ele faz croissants excelentes e é um fulano simpático sempre com um sorriso para os clientes. Está mesmo completamente integrado na vizinhança. E não são nem as suas longas barbas nem a mazela de rezar na testa (indicativa da sua grande devoção) que incomodam a clientela. Estão demasiado ocupados a embrulharem as sandes para o almoço. As que ele vende são fabulosas mas a partir de agora não mais existem as de fiambre nem as de bacon. O que não é um problema porque existem muitas outras escolhas – atum, galinha e os complementos todos. Seria, portanto, pateta resmungar ou armar confusão numa padaria tão adorada. Nós habituamo-nos com facilidade. (…) Nós adaptamo-nos.”
Uns malditos os Charlies que têm o desplante de tocar na ferida. Na realidade, uma sociedade sem capacidade para se sentir a si própria, manietada por sentimentos de culpa e atafulhada de pensamentos tolerantes… Melhor, uma cultura sem coragem de ser por causa dos outros, coitados, que até a invejam, candidata-se ao esquecimento desfeita no pó dos tempos. O que nos falta perceber, no ocidente, é não existir vergonha alguma em sermos como somos, em renegar muçulmanos e todos os outros que entendam a religião como uma condicionante da vida, tal como hoje escarnecemos os inquisidores e moralistas que um dia nos fizeram baptizar um certo período na nossa história como “Idade das Trevas”.
Se não pretendermos voltar a esses tempos assustadores, temos de ser capazes de perceber que a tolerância para com os outros não pode exceder a nossa forma de vida, leia-se os Estados laicos que nos deram a liberdade, a alegria de viver, de dizer o que nos apetece, de criar como nos aprouver, de vivermos como nos der na gana. Mas também alguns do nosso lado tentam fazer-nos voltar atrás, como o beato do novo presidente que na sua primeira missão oficial como representante do Estado (laico) português foi beijar a mão ao Papa, fazendo questão de nos lembrar da “dívida” para com o Vaticano por nos ter reconhecido o país… Não está em causa Francisco, que tem tido um pontificado de mérito, mas o significado da visita. Estivesse lá o Rato Zinger e seria igual. Mas em Portugal ninguém disse nada, ninguém comentou. Talvez por acharmos normal, talvez porque, ingenuamente, pensemos que as trevas não mais voltarão. Mas elas voltam quando desistimos de procurar a luz. Talvez não com a cruz, talvez com um crescente, ou outra coisa qualquer, mas virão se não percebermos o que devemos ao laicismo. Não venham, portanto, com razões religiosas para isto ou para aquilo. Não valem. Não são aceites em Estados laicos. Esquecermo-nos disto leva à crise, ao extremar de posições, à intolerância e, por fim, à guerra.

David Bowie – All the Madmen (1970)

(Where can the horizon lie 
When a nation hides 
Its organic minds in a cellar…dark and grim
They must be very dim) 

Day after day 
They take some brain away 
Then turn my face around 
To the far side of town 
And tell me that it’s real 
Then ask me how I feel 

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