Miguel de Senna Fernandes, advogado e presidente da APIM

A introdução do Cantonês na EPM, o romper de valores conservadores e uma nova geração portuguesa que venha mudar o cenário de “guetos” entre a própria comunidade são algumas das necessidades defendidas por Miguel de Senna Fernandes. O novo presidente da APIM garante que vai inovar, assumindo todos os riscos precisos

Assume agora a presidência da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM). Como avalia a conduta e o trabalho da direcção cessante?
Fez-se o trabalho que se podia. É preciso ver que a APIM atravessou momentos muito difíceis. Para já, quando foi a transferência de soberania, a APIM abraçou o projecto do Jardim de Infância Costa Nunes. Historicamente, a APIM promovia a instrução através de uma escola comercial, portanto estava vocacionada para o ensino secundário. Abraçar este projecto, do jardim de infância, foi uma decisão que mereceu muita ponderação e discussão. Estava em causa a sobrevivência da escola. A APIM teve prejuízos enormes, de ano para ano, só para assegurar o Costa Nunes. Não foi uma coisa fácil. Portanto a direcção só merece o nosso louvor. Mas julgo que, actualmente, há margem para mais. Julgo ser a altura ideal para outros voos, coisas mais altas. Mesmo que isso implique riscos, estou aqui para os assumir. Neste momento temos vontade para a melhorar e fazer mais. Há uma grande margem para melhorar.

Tem planos, projectos, novos para garantir o futuro da APIM?
Ainda não reunimos, ainda não falei com a nova direcção. É importante perceber quais as expectativas do novo grupo. Não nego que é clara a vontade de inovação na APIM. Todos nós [membros] temos consciência da tradição da Associação, que se tem reflectido nos seus quase 138 anos. Existem expectativas, mas para já ainda não falei com a direcção, nem com as instituições que estão ligadas à APIM.

Mas… ideias para concretizar? Falou em aposta na Educação…
Tenho. Mas é preciso perceber se são ideias viáveis ou não. Só o tempo o dirá. Não tenho problema em assumir, se a direcção achar, que possam ser ideias más, em caso disso, ou boas. Primeiro de tudo é preciso assumir que a APIM é uma associação vocacionada para a instrução dos macaenses, ou seja, a tal aposta na área educacional. Claro que temos uma vertente cultural importante, mas estatutariamente a finalidade histórica da criação da associação é para prover a Educação. Ao longo do tempo fomos refinando os objectivos da APIM, mas esta é a nossa base: promoção da instrução, promovendo a Língua Portuguesa e Chinesa. Uma das ideias que tenho é que a educação que se pretende é de matriz portuguesa, mas o que a APIM defende, ou deve defender, é um ensino com base portuguesa mas adaptado às realidades do território. Isto é importante.

Uma mudança nas línguas oficiais do ensino?
[Esta ideia] vai mexer com muita coisa. Sim, vai mexer com as línguas [oficiais] do sistema de ensino e, portanto, é necessário que a Escola Portuguesa (EPM) seja um atractivo. Não quero dizer que não o seja agora, mas esta escola é uma oportunidade para os encarregados de educação portugueses que chegam ao território. O currículo com correspondência total em Portugal é, claro, atractivo para estas pessoas. O que pode não acontecer com outros encarregados de educação, como é o caso dos macaenses. Muitos destes preferem não entrar na EPM porque outras instituições podem ser opções que conferem maior competitividade no mercado de trabalho futuramente. Isto traz vários problemas. Sendo a comunidade macaense de raiz portuguesa chegará uma certa altura em que os próprios macaenses, mesmo e estando em Macau, deixará de falar Português.

Defende então uma mudança na estrutura da EPM?
Acho que a EPM tem de ser uma escola de Macau. Não pode ser um mero implante do ensino português em Macau. Não pode ser. Isto vai contrastar com a realidade local. Apesar de ser atractiva para determinadas pessoas, principalmente portugueses, é descabida para outras pessoas que têm outro tipo de expectativa desta escola. A EPM está condicionada a um certo sistema que pode não ser o melhor. A ideia é ver até que ponto nós [APIM] podemos aumentar o ensino da língua chinesa.

A escola D. José da Costa Nunes lecciona Mandarim. Defende esta disciplina como obrigatória?
Não está nada mal. O Mandarim é a língua oficial da República Popular da China, mas pergunto-me: não se pode ensinar Cantonês? A verdade é que estamos em Cantão e o que se ouve na rua é Cantonês. Não podemos esconder esta realidade, não é pela língua oficial ser o Mandarim que vamos esquecer o Cantonês. É importante [saber o Mandarim] para quem vá singrar noutras partes do mundo usando esta língua. Não estão em causa as boas intenções da escola. Mas vejo que a possibilidade de se ensinar e falar Cantonês fica arredada. É que o Cantonês, quem for ler a história, foi tão importante como o Mandarim. As pessoas que abraçam o Mandarim como língua oficial tem um certo desdém pelo Cantonês porque é um dialecto de Cantão. Mas, historicamente, depois de implantada a república na China, debateu-se a grande questão da língua. Na altura, os grandes falantes e políticos eram do Sul, falavam Cantonês. Aqui em Macau, seja que profissão for, é tudo em Cantonês. Como é que se pratica o Mandarim que está a ser leccionado em Macau? Sejamos realistas. O ensino desta língua, com todo o mérito que possa ter, serve para o dia-a-dia?

Seria importante ter o Cantonês como língua oficial nas escolas?
Vamos ver até que ponto é tão inviável a implementação na EPM. E por que não? Vamos ver se é possível. É preciso perceber as mudanças que poderá trazer. Vamos ver, não sei. [A APIM] vai conversar com todos. Se as coisas forem bem pensadas para a EPM, acredito que as coisas possam melhorar e o melhor, para já, é abertura de mente. Os alunos que vêm, seja de que país for, parecem-me ter interesse em aprender a língua que de facto se fala em Macau. A necessidade do Mandarim, isso logo se verá.

A escrita já foi vista como entrave…
Sim, muitas vezes. Na realidade, nunca foi fácil. Vale a pena olhar a realidade de Hong Kong, na redução da escrita do Cantonês. Isto foi aceite pelos estudiosos da língua chinesa. E por que não? Vejo sempre uma necessidade da EPM ser de Macau. Os utentes, os pais, os encarregados de educação devem ter esta noção: isto não é uma escola tirada de uma cidade portuguesa e colocada em Macau. Não. Mas sabemos, claro, que para isso é preciso também convencer o próprio Ministério da Educação português. A APIM conta em reunir com os responsáveis para falarmos sobre esta adaptação, para localizar a EPM em Macau. Acredito que até possa estar a ser feito o trabalho, mas gostaria que a comunidade sentisse isso. Que sentisse que a EPM não é só para determinados portugueses, mas sim para todos. Esta escola tem todas as potencialidades de ser “A Escola” onde efectivamente se ensina Português. Com todo o respeito a todas as instituições que se esforçam para leccionar esta língua, mas a EPM deve ser a escola de referência.

Decorreu o seminário sobre a importância dos jovens na continuidade do ser-se macaense. Como se seduz esta nova geração?
De facto, há certas fórmulas que já não funcionam muito bem, talvez seja altura de as substituir por outras. No fundo não se deve retirar o que é antigo ou tradicional. Não queremos mudar tudo, não é assim que se fazem as coisas. Mas são precisas coisas novas em tudo. Como se atraem os jovens ao interesse é sempre uma incógnita, mas para mim passa sempre pelo despir de preconceitos. Não podemos cair na descredibilização dos jovens. “São os putos”… ou “ainda tens de aprender muito”… são expressões erradas. Claro que têm de aprender. Até nós. Para mim passa por falar terra-a-terra. É preciso que ambas gerações tomem uma atitude de colaboração entre si. A verdade é que a nova geração deve preocupar-se com a comunidade, mas a actual geração deve também mostrar que se preocupa, para passar o exemplo.

A sua área de actuação é o Direito. A medida mais recente avançada pelo Governo é a alteração ao Código Penal, incluindo alguns tipos de crimes sexuais e deixar de diferenciar o género em caso de violação. Como vê esta proposta?
É uma abertura clara, mas mais do que isso é realismo. Então não há homens espancados por mulheres? Tantos. O homem por ser homem, por ter estatuto, pelos códigos sociais existentes – em que parece que é errado o homem estar abaixo da mulher – [não pode ser protegido?] As pessoas vão calando. Há abusos? Claro que há e não são de agora, isto já vem de há muitos anos. Há homens que sofrem privações em casa. Acho que o Governo assumiu uma postura de abertura e é uma abertura de louvar, porque é uma realidade. Estamos a olhar para o crime. Ainda bem que assim acontece. No continente a nova norma penal sobre violência doméstica é revolucionária e talvez isto seja reflexo.

Em Macau continuamos com o dilema do crime público ou semi-público…
Continuo a defender o crime público. Não faz sentido ser de outra maneira.

Mas os códigos sociais que falava vão permitir que seja crime público?
Se formos por aí, então é quase certo que não será. O conservadorismo nunca permitiu mudança mas, efectivamente, há regras e convicções que têm de ser mudadas. O mundo actual não se pode esconder, nem sequer há o conceito de que em minha casa ninguém manda. Actualmente existe outro tipo de conhecimento, de relações. Há um acesso à informação totalmente diferente. Esta história da “harmonia no lar” [defendida pelo Governo] já cheira a farsa. Claro que precisamos de harmonia, isto é um lugar comum. Ninguém quer que não haja. Esta história da “harmonia no lar” leva-nos a situações caricatas em que o casamento já acabou mas as pessoas se mantêm unidas, por razões sociais, só. Situações de violência, de ambas as partes, insultos e tantas outras coisas… Como é que podemos falar de harmonia? Não posso acreditar que, neste século, uma mulher ou homem que, depois de insultos e agressões, ainda se consiga abraçar [ao parceiro/a]. Quem acarinha quem nos bate? Isso é doentio. Mas ainda há quem acredite, os conservadores acreditam.

Se na China continental mudarem os conceitos, em Macau também mudam?
Basta isso. Basta que o continente mude, aqui tudo mudará. O discurso do regime de harmonia é correcto, claro, mas este discurso não pode ser uma manta que tape todos os podres que todos sabemos que existem. Que seja uma harmonia verdadeira. Estou convencido que todos aqueles que apregoam, nas melhores intenções, a harmonia não querem que isto seja um manto que engana. Precisamos de mudar as nossas mentalidades. Em pleno século XXI cada um de nós sabe até onde pode ir, onde estão as liberdades dos outros, cada um de nós deve saber como respeitar os outros. Isto é de interesse público. Se há crime é crime público.

Relativamente ao caso dos magistrados que estão a ser repescados de Portugal, como avançado pelo HM. Como analisa o caso?
Eles são magistrados de carreira e por isso servem as directrizes de Portugal. É óbvio que, estando em fim de carreira, não querem arriscar nada e por isso é melhor ir embora do que desafiar. O caso de Vítor Coelho – todos sabemos a sua qualidade excepcional – é um desses casos, estando em final de carreira. Arriscar para quê? O grande problema aqui é a falta de visão da República [Portugal], completa falta de revisão. O órgão do Conselho de Magistratura do Ministério Público não sabe absolutamente nada sobre Macau, não é sensível. Os magistrados que estão aqui não é por bel-prazer. Os magistrados estavam aqui a cumprir um papel fundamental da divulgação e manutenção de um certo espírito da lei [portuguesa]. Portanto sempre foi uma tarefa muito mais nobre do que aquilo que se pensa. O Estado português uma vez mais esteve numa situação de impotência. Isto é uma falha brutal. A cegueira é de tal ordem.

Ainda não se justificou…
Não, não há nenhuma justificação sobre a não renovação. Apesar da RAEM pedir que fossem poupados. É de loucos. O que é que os quatro magistrados vão fazer? Há tanta falta de pessoal… e agora? Tudo isto é de lamentar profundamente. Até agora ainda não chegou nenhuma justificação e não sei quando chegará, não faço ideia.

Mantém-se sempre muito activo entre as várias comunidades. Sente racismo entre os vários grupos sociais em Macau, incluindo os portugueses?
Racismo há em todo o lado porque é a intolerância. Antigamente quando se falava em racismo era por causa das diferentes raças, mas hoje em dia o racismo começa a ganhar outras formas e a sua raiz é a intolerância perante as diferenças. Se isto existe em Macau? Claro que existe. Mas ao olhar para o racismo temos que ver as várias nuances. Não é o racismo de raça, as coisas mudaram.

Então que tipo de racismo existe em Macau?
Há racismo de intolerância pela diferença. Há portugueses, por exemplo, que estão aqui e apontam o dedo a mim e dizem: “olha este chinês”. Faz-me rir. Se estivesse em Portugal até compreendia, mas e então? Claro que sou chinês. Chamaram-me muitas vezes “chinoca” e então? Pois sou. Eu refilava, na altura. Entretanto acabei por me habituar, mas é preciso ver que no contexto de Macau isto é complicado. Uma vez a minha filha – aconteceu às duas que estudaram na EPM – chegou a casa muito chateada. Perguntei-lhe o que se tinha passado e ela não queria voltar à escola. Um colega de escola insultava-a por ela ser chinesa, por falar mal Português e por outras coisas. Olhei para ela e disse-lhe: quando sais da escola o que é que vês? Que tipo de pessoas vês? E ela responde: chineses. Somos mais de 90% da população, faz sentido apontar o dedo ao chinês? Claro que não. Aquela foi uma atitude de uma criança, mas o erro vem dos pais. É uma má atitude e as crianças imitam.

Há portugueses que assumem uma postura de desdém?

Sim, exactamente. Existe um atitude de desdém de [alguns] portugueses que já aqui estão há muitos anos. O mesmo não acontece à nova geração porque estes nunca conheceram Macau como colónia. Esta nova geração aceita a diferença, quer juntar-se com os locais e isto é muito bonito. Aceitam. A geração mais velha é diferente. Em Macau temos guetos entre portugueses. Isto é frustrante, quando nós, daqui, temos uma ideia muito mais nobre de Portugal. Nós em Macau temos uma noção de portugalidade muito mais nobre, vasta. Portugueses viajaram pelo mundo, o português é um cidadão do mundo, aventureiro, misturou-se com os locais. Não é isto. A capacidade de se misturar com as pessoas devia estar no ADN dos portugueses. Mas Portugal fechou-se, criaram-se guetos e estes continuam vivos aqui em Macau. Guetos na EPM, guetos aqui e acolá. A noção que temos dos portugueses não devia mudar para isto.

A nova geração poderá mudar isso?
Sim, claro. Portugal está à rasca e obriga as pessoas a olhar para o passado e a querer ser vencedor outra vez. Nós fomos aventureiros, nós fomos vencedores. E vamos voltar a ser.

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