Cidade Ligada ao Grande Canal

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a província de Jiangsu, numa viagem de uma hora de autocarro desde Suzhou, chego a Wuxi. A noite já tomava conta da cidade, quando procurei um hotel nas imediações da praça onde se encontra a estação de autocarros e do comboio, ambas próximas uma da outra. Questionando sobre alojamento ali próximo, falam-me de uma pensão para a juventude, o que até então nunca tinha experimentado, já que estas, só apareceram na China nos finais do século XX. Pouco andei para aí chegar. O quarto é rudimentar, mas resolvi ficar, apesar de por aquele dinheiro poder usufruir de um bom quarto, num normal hotel e por um pouco mais, ter quarto de banho no quarto. Estou na avenida principal da cidade de Wuxi e para além de muitos centros comerciais com lojas de roupa de marca estrangeira, apenas encontro dois locais de comida rápida, muito plastificada no seu aspecto. Como mau sinal, à entrada de um deles, alguém tinha “deitado carga ao mar”, o que me retira logo a vontade de comer, apesar de prontamente ter sido limpo o chão. Assim, procuro uma pastelaria e após comprar algo para afagar o estômago, recolho à pensão. Sentado na sala de convívio onde a televisão se encontra ligada, na companhia de outro hóspede, empurro umas buchas com água quente enquanto converso com esse jovem chinês, que ali vive há um mês. Tinha arranjado trabalho na cidade, depois de formado em Engenharia nos Estados Unidos da América e agora ganha currículo e dinheiro, enquanto tenta perceber qual será o negócio a investir. Sugiro-lhe pensar em algo ligado ao ambiente, como reciclagem do lixo ou limpeza de água, já que olhando os últimos anos, por aí será seguramente uma das necessidades básicas e um negócio promissor.
A noite foi de um longo pesadelo, muito devido aos mosquitos e só com a luz acesa consigo ter sossego. Às seis e meia da manhã deixo um dos locais de hospedagem onde passei uma das piores noites de sono que tenho memória. Com a mochila às costas, algo que deixou de estar em moda, mas que dá muito jeito pois, deixa-nos as mãos livres, sigo caminho para a estação. A vontade é de apanhar um transporte e prosseguir viagem para outra cidade, de tão mal-humorados que estou. Mas pensando a razão da visita, que traz o lago Tai como um dos lugares a não perder, deixo a mochila guardada na estação dos caminhos-de-ferro.
Partir ou ficar mais uma noite, só terá resposta depois, pois aguardo que a cidade me surpreenda e traga vontade para a explorar. Agora quero saber como chegar ao Lago Tai. A sorte parece estar do meu lado. Há um autocarro directo para o Taihu (hu=lago) a partir da praça defronte à estação. O preço do bilhete é de dois yuan para fazer os cinco ou seis quilómetros de viagem. Rumando para Sudoeste, o autocarro atravessa as pontes sobre os canais e é quando percebo a razão de tantos mosquitos.

Uma viagem pela memória

Na primeira estadia em Wuxi, fora-me indicado para pernoitar o hotel da Universidade, situado junto ao lago Tai, pois decorria um período de festas e não havia um só quarto livre na cidade.
Enquanto vamos torneando, recordo a viagem no autocarro número 2 feita há dez anos a caminho da Universidade. Wuxi converteu-se numa pretensa cidade moderna, cheia de prédios e centros comerciais, perdendo o cariz que tinha outrora com a sua atraente e antiga arquitectura. Poderia compreender que nessa altura muitas das casas não tinham condições de habitabilidade mas, poder-se-ia ter recuperado Wuxi com outro tipo de matriz. Agora a cidade está igual a tantas outras espalhadas pela China. Atravessando pontes, revejo os canais anteriormente visitados e constato terem perdido a sua grande animação. As margens estão agora limpas dos barcos que ali estiveram estacionados durante anos a servir de habitações e armazéns. Actualmente, pelos canais apenas navegam alguns cargueiros e a vida nos canais já não se distingue da existente em outras partes do Grande Canal.
Fora próximo da Universidade que, de barco, dera uma pequena volta pelos recantos do lago Tai, quando o turismo ainda estava maioritariamente virado para os estrangeiros e poucos eram os chineses que tinham hipóteses de usufruir o encanto das paisagens do seu país. Tivera a companhia de um grupo de reformados chineses e deliciosamente o pequeno barco foi passando tranquilamente por campos de milho, arrozais e fábricas, muitas delas abandonadas, talvez para serem reestruturadas pois, nessa altura, começava a reforma industrial com a vinda de muitas empresas de Singapura e de Hong Kong. Poderia ser também para as retirar daquele idílico local e assim vocacioná-lo para o turismo.
Connosco viajou um professor de História que se tinha reformado e me foi contando as origens da cidade.
Estava-se no século XI a.n.E., quando, nos finais da dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.), Tai Bo e Zhong Yong, dois príncipes irmãos do Rei Tai (Gugong Tanfu) do reino de Zhou, ao emigrarem do Noroeste da China para junto do Rio Yangtzé, fundaram Gouwu, ou simplesmente reino Wu. Já com a dinastia Zhou no poder, fizeram do local de Wuxi a sua capital, com o nome de Youxi, que significava local com estanho. Zhong Yong encontra-se sepultado no monte Yu, junto ao lago Shang, em Changshu, a Norte de Suzhou, que nessa altura se chamava Wu. Já Tai Bo tem um pavilhão em sua honra, próximo da cidade, em Meicun, local onde se fez a cidade, cujo nome de então era Meili.
A cidade ganhou tanta projecção que mais tarde, no Período dos Reinos Combatentes, aqui aconteceram muitas batalhas entre os reinos de Yue e Wu.
Em 584 a.n.E., o reino de Wu, aprendendo a atirar com o arco e a usar cavalos e carroças para a guerra com o reino Jin, foi construindo aos poucos a sua força, ao mesmo tempo que entrava em contacto com os reinos do Norte. Wu era um pequeno reino em Jiangnan em torno da capital Youxi (Wuxi), mas em 514 a.n.E., Wu, a actual Suzhou mudou o nome para Helu e após grandes obras, mandadas fazer por ordem do Rei He Lu, tornou-se capital do reino.
Um general do reino Chu, Huang Xie, foi enviado para reconstruir a cidade de Youxi, destruída pelas constantes batalhas. O nome de Wuxi (sem estanho) aparece na dinastia Han, quando o país estava reunificado e significa que o estanho tinha acabado. Ganhou importância na dinastia Tang devido à existência de Jiangyin, um porto fluvial do Grande Canal, ficando desde então ligada a este enorme corredor de água.
Na vizinhança de Wuxi e Suzhou, o grande lago Tai (Taihu), um dos cinco, talvez o terceiro maior lago de água doce da China, com uma área de 2400 m², uma profundidade de dois metros e quarenta e oito ilhas, estava já ligado no século V a.n.E. ao Changjiang, como os chineses chamam ao Rio Yangtzé.
As duas horas de passeio pelo lago Tai tinham deixado na memória a vontade de voltar e saber o que aí tinha sido realizado.

O Lago Tai

Agora aqui estou, seguindo no autocarro número 1, atravessando extensos lençóis de água para ser depositado à entrada de um parque de estacionamento onde, mudando para o autocarro do recinto, sou levado ao Parque da Cabeça de Tartaruga. Pelo número de autocarros com excursões e de pessoas que esperam em fila para comprar o bilhete de entrada, percebo que as memórias que trago estão muito longe do tempo.
Nestes últimos vinte anos, o turismo foi uma das indústrias que mais rapidamente se desenvolveu na China, sendo actualmente o primeiro país da Ásia em número de visitantes. Os chineses tornaram-se turistas no seu próprio país e têm vindo exponencialmente a aumentar. A China está a renovar as suas estruturas turísticas e a diversificá-las e por todo o lado se percebe a atenção que está a ser dada a esse sector, ligando-a com a renovação dos transportes, da parte hoteleira, dos templos e parques.
Pago a entrada para ter acesso a uma península, onde como Paraíso se esquece o mundo deixado para trás, que foi local visitado por imperadores e desde 1918 criado como parque. Encontro-me no Promontório da Cabeça de Tartaruga (Yuantou Zhu) aberto todos os dias das sete da manhã às cinco da tarde.
Os pessegueiros e ameixoeiras floridos com brancas e lilases flores envolvem pontes e rochas numa formação de jardim natural onde não falta a criação humana entrosada na natureza, assim como um templo budista.
Os barcos que antigamente enchiam as águas do lago começaram a rarear e agora, com as antigas velas em leque e feitas com bambu, poucos são os que ainda aqui navegam. Logo à entrada de Yuantou Zhu, um estaleiro prepara uma nova embarcação a imitar as antigas, mas transformada para acolher os turistas que se deliciam pelas águas do lago e vão em visita à Ilha de Sanshan.
Uma pequena embarcação a remos aproxima-se da margem do cais e um casal idoso tenta vender o peixe fresco, acabado de pescar.
Taihu é famoso pelas esculturas naturais de pedra, que nas suas águas longamente foram esculpindo. Actualmente, nas margens do lago encontram-se muitos depósitos dessas pedras que são colocadas dentro da água para serem corroídas e ganharem as formas abstractas com que são reconhecidas.
Após horas pelas margens do lago, resolvo sair por outra das pontes, que me leva até onde na primeira vez andei.
Falam-me numa plantação de amoreiras na parte Nordeste do lago, que é fertilizada com os excrementos dos peixes e caranguejo. Passeando, chego a uma parte lodosa, devido à descida do nível das águas e me deixa muito longe dela. Já os velhos barcos de recreio, agora encalhados, indicam terem as águas do lago recuado muito. Estátuas gigantes de caranguejos estão dispostas num relvado envolto por árvores. Não são as amoreiras que pretendia encontrar, mas o terreno serve na perfeição como habitat dos caranguejos.
Parece prepara-se aí já algo, pois está a ser dragada o terreno agora seco junto a alguns restaurantes, também a serem remodelados. Lembro-me de ter provado há dez anos esses famosos caranguejos, que fazem as delícias nos restaurantes de Shanghai.
Ao fim da tarde volto a Wuxi e com a cidade sem o antigo carisma, sobretudo vivido ao longo do Grande Canal, recolho a bagagem e sigo viagem a caminho de Yixing, no outro lado do lago Tai e famoso por ser um local de artistas que trabalham o barro fazendo artísticos bules de chá.

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