Novembro ou o mundo mutantis

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascidos das trevas e do breu, formamos pactos com a luz, pois que toda a estrutura é sombra ainda de outros reflexos, prostrados em cada mancha que o movimento cobre. É uma impudência este cerco com um imenso campo de probabilidades, que tanto prendem como libertam da imensa, e ainda, escuridão. Podemos ser aqueles que ansiaram a cólera e a tragédia como reflexo da origem, plasmadas em vício e trauma, como escamas antigas de um reino morto. Tudo aquilo que os lassos sentidos não firmaram, arrancados nos são em Novembro, quando o tempo se abre para a ranhura inescrutável do abismo.
A Festa dos Mortos, esse paradoxo, um Verão de noites que não são pequenas, um afundar na beberragem gratuita e fausta antes de se fechar o grande postigo do tempo cíclico: avança então para os úteros infernais de onde sairá a dois de Fevereiro, Festa da Candelária, Senhora da Purificação, cruzando com os mitos Eulesianos, mas de carácter judaico-cristão, a contar depois do Natal: (trinta e nove dias as mulheres seriam purificadas do nascimento de um menino). Mas Novembro era em si tão grande, que Outubro não tinha casa zodiacal, acabando por ficar subdividido com o símbolo da Balança as qualidades de César. Novembro começava em Setembro e tudo era outro tempo na roda das Estações.
Novembro hoje, agora, este ano foi todo ele o mês do breu. E se existe de facto uma hora propícia para as acções devastadoras, essa hora é a das manhãs, este Novembro adensou a escuridão, a mudança do paradigma; treze de Novembro, Lua-Nova e sexta-feira, a escuridão foi um selo que nos sitiou. Até os antigos condenados sabem bem do ar da Alba… dos amanheceres. Mundo-Mutandis.
Esta noite, este Novembro, este sangue, este medo, esta contaminação do terror em nossas praças, estas mandíbulas de cercos que avançam como se fossemos a Jibóia engolida pelo ventre da Baleia, faz mais escuros os dias que nos cercam. Vivemos sem pensar que a melhor herança da Liberdade, fora afinal a confiança no outro, e, sem pensar, o nosso tempo, não sendo o melhor, tinha tido esse alto grau da consciência humana; neste Novembro, vemos com a perplexidade dos que acordam no meio dos pesadelos, o que quer dizer a falta dela. Sitiados, os nossos sentidos estão cautelosos, em alerta.
São jovens a maior parte dos assassinos e também as suas vítimas. O sangue jovem sempre foi aquele que os deuses gostaram mais para saciar as suas sedes, como se um lado sacrificial do Novilho ainda fosse a condição «Tão jovem! Que idade tem? Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe».
Novembro nove, novo, é sempre o que restou das noites muito curtas do Verão. Disse Flaubert: “Felizes aqueles que comem demoradamente… afastam convivas insaciáveis que os importunam com pedidos e que, no último dia, à sobremesa, quando uns dormem e outros se foram embora doentes, podem beber finalmente os vinhos mais finos, saborear os frutos maduros, gozar os últimos fins da orgia, esvaziar o que restou, de um grande trago, apagar as velas e morrer!”
O ciclo das coisas alterou-se, e até quem gostava das brisas da manhã para as ideias irrigadas de fresco oxigénio, até elas, entram agora pela noite no transbordo de um ciclo transformado.
Que as trevas não nos vejam chorar que lágrimas nos caem sem sentido aparente na nebulosa Estação vivente, e que um Mundo tão mudado não nos tire uma certa claridade a que nos agarrámos como últimos sobreviventes. Ainda temos Goethe que às portas da morte exclamava com transcendente apelo….«Luz, mais Luz…». Mas os poetas morreram há muito neste mundo que se foi mudando sem eles, e quando morrem os poetas, levantam-se agrestes, as trevas. Eles estavam anulados mas ainda equilibravam o mundo nas coisas mais funestas tal como as sentinelas nos seus postes, seria preciso uma quase imolação para salvarem o que tanto se perdeu.
Novembro tirou-me a tranquilidade para amanhã pensar que a noite pode ser como os «Hinos de Novalis» e entrar nela cantando. Já não há Cânticos que apaziguem as feras, nem cítaras para que elas fiquem em paz. As flautas de Pan estão partidas nestes caminhos e os Concertos, a alegria, o som que se produz, parece até enraivece-las um pouco mais. Flautistas de Hamelin procuram-se para afugentar as pragas.
Uma música concertada que dê rumo aos que não sabem que o som pode vir dos acordes e dos acordos mais bonitos.
Talvez compor um Hino e pô-lo a cantar no Coração das Nações.

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