Lastimável mundo chupá-ôvo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]notícia mais importante do momento devia ser a dos atentados da última sexta-feira em Paris, que custou a vida a centena e meia de pessoas, vítimas do terrorismo islâmico. Digo que devia, porque seria sinal de que aquele momento de terror onde o medo é mais sentido tinha ficado por ali, e que restava apenas reconfortar os familiares sobrevivos das vítimas e outras pessoas íntimas, que no fim acabaram por ser as únicas para quem o dia seguinte não foi mais um dia igual a tantos, nem muitos outros depois desse, e eventualmente há quem sinta aquela falta até ao dia em que também ele adormecerá pela última vez, e quer essa ou qualquer outra dor deixarão também de o ser, perante o cândido abraço da morte.
A semelhança entre este atentado terrorista, um acto que nos deixa sempre revoltados, e outros em que se lamenta a perda de vidas humanas é o sentimento de frustração por sentir que a morte não teve causas naturais, nem foi produto do acaso, de um acidente, algo completamente casual, tudo o que possa ser abstracto, invisível e imprevisível, sempre mais leve para carregar no peito. Aqui entrou a mão do Homem, de outra criatura da nossa espécie que teve a ousadia de extrapolar os limites do seu ser, que ao ambicionar alargar por razões que só a ele lhe dizem respeito, apropriou-se do ser alheio, de um outro ser como ele, à revelia da vontade deste, assim reduzido à condição de mero instrumento.
Não é por maldade ou tacanhez, antes próprio do nosso instinto, comum a outras espécies do nosso reino, o animal: não aceitamos que desvalorizem o nosso bem mais precioso, a vida, ou gostamos de vê-la negociada, quem sabe se até exposta, e no fim disposta – é o insulto supremo. Sentimo-nos igualmente legítimos representantes de quem perdeu dessa forma a sua vida, e não teve nem tem neste particular uma palavra a dizer, a não ser por nós – e é claro que ele nunca autorizaria que alguém determinasse por ele que era hora de deixar de viver. É apenas senso comum.
O terrorismo, seja ele de que natureza for, tem como personagem principal a morte, além de um outro com quase tanto protagonismo: a desumanização. Inicialmente temos dois seres humanos, que por acção do terrorismo de um deles, deixa-nos com nenhum ser humano, ou seja, a vítima aqui perdeu a sua vida natural, e o terrorista, mesmo que sobreviva, terá perdido irremediavelmente a sua condição de ser humano, pois após o acto para o qual achou necessário dispôr de outro, acabou desumanizado.
A vida, toda a vida que existe no alargado âmbito da natureza é nada mais que uma das muitas fases do processo de contínua transformação da matéria, mas exposta ao sopro da humanização, dota-nos da humanidade, uma espécie de “package” contendo uma série de aplicações que nos distinguem dos restantes seres vivos, sendo o mais importante e especial de todos a inteligência, que nos deixa tentar racionalizar o porquê de entrarmos nessa roda viva da matéria, se foi mesmo por acaso, e dá-nos a faculdade de interferir nesse processo, e até eventualmente poder transformá-lo, adaptando-o a nós, quando no início éramos nós que nos adaptávamos ao meio, e nada mais do que para sobreviver, apenas, sem pensar em porquê, ou para quê.
Eu tenho uma concepção de luto, pesar, nojo, o que quiserem, que provavelmente deveria ser revista, uma vez que não parece estar actualizada para fazer face aos novos desafios do mundo que agora temos, em que o importante é ficarmos unidos, prosseguindo no caminho que cada um acha melhor. Esta contradição em termos leva-nos a lugar nenhum, mas nem por isso nos inibimos de tentar levar o maior número de seguidores, ou aderir a um grupo que achamos que mais se identifica com a nossa natureza, ou aquela que julgamos ser a nossa natureza, e à qual adicionamos os nossos valores. E é aqui que tudo se complica: os valores, que não são todos adaptáveis ao conceito de “um mundo melhor” que julgamos ser o ideal para todos.
Foi aqui que se deu esta nova mutação do vírus do terrorismo, que pode ter adquirido novas características, mais letais e mais imprevisíveis que nunca. Uma família em luto, figura que curiosamente tem ficado de fora deste autêntico espectáculo de variedades que se seguiu ao primeiro atentado, e a que eu chamo “segundo atentado”, não quer ouvir falar de “guerra” quando perdeu alguém que ama e que não lutava em qualquer guerra. Quem está a carpir a dor de perder alguém próximo não quer ouvir as mil e uma versões, algumas delas delirantes, de como esse alguém serviu de sacrifício, ou de como seria “se”, ou de como “já se sabia”, ou ainda “eu já tinha dito que isto ia acontecer”. Essas palavras conjugadas e ditas por dizer, ou por vaidade, são como punhais no coração de quem as ouve e fica com vontade de perguntar: “então porque não fizeste nada?”.
Estes atentados, o que custou a vida a centena e meia de pessoas em Paris naquela sexta-feira 13, e o outro que se encontra em curso neste momento, estão quase que umbilicamente ligados um ao outro. O tal “package” de aplicações de que falei mais atrás contém dois programas distintos, mas que não funcionam um sem o outro; o primeiro faz-nos distinguir o justo do injusto, conforme a nossa interpretação dessas valências, enquanto o outro nos permite determinar quem é culpado, ou não existindo culpa, quem permanece na sua forma original e pura de inocente. Quando somos vítimas do que achamos injusto, e respondemos com a mesma moeda, perde-se não só o que tinhamos por justo, mas também a capacidade de distinguir os culpados dos inocentes, alterando assim as prioridades: todos suspeitos até prova em contrário. É lastimável, com o próprio mundo, que dá vontade de mandar “chupá ôvo”.

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