Hyeonseo Lee, dissidente norte-coreana e escritora

Dissidente, imigrante ilegal, refugiada. Hyeonseo Lee passou por vários estatutos e já assumiu vários nomes para que nunca fosse descoberta. Uma norte-coreana que aos 17 anos quis saber se tudo o que o líder do seu país diz corresponde à verdade. A percorrer o mundo com a sua história, Lee quer fazer mais. Mais que isso, quer voltar, quando Kim Jong-Un cair

Depois de várias voltas ao mundo em conferências onde partilha a sua história, lança agora um livro, “The Girl With Seven Names”, divido em três fases: infância, adolescência e depois de sair da Coreia de Norte. Fale-nos um pouco sobre este projecto.
O meu maior objectivo [através de conferências e agora o livro] é chegar à comunidade internacional e sensibilizá-la para a situação vivida na Coreia do Norte e por todos os norte-coreanos. Para que assim a comunidade se possa envolver directamente no assunto e na ajuda aos dissidentes, ajudando ainda na mudança no meu país.

Daí a sua dedicação ao estudo da língua inglesa…
Sim, esta é também uma das maiores razões que me fez dedicar-me tanto à aprendizagem do Inglês. Estudei intensa e arduamente para que me fosse possível chegar directamente à comunidade e às pessoas do mundo exterior, falando-lhes e transmitindo-lhes a situação ainda hoje vivida na Coreia do Norte.

Uma partilha essencial?
Sim. Estou a planear lançar uma organização que permita trazer mais norte-coreanos para estudar, envolvendo-se com a comunidade internacional de uma forma directa. Actualmente muitos norte-coreanos dissidentes vivem numa bolha que os protege do exterior e, por isso, não conseguem conhecer pessoas de todo o mundo. Se cada vez mais, estes dissidentes trouxerem a público as suas histórias, as suas experiências, e partilharem com a comunidade internacional, mais as pessoas perceberão a necessidade de se envolver. Assim todos nós teremos a oportunidade de promover a verdadeira mudança na Coreia do Norte.

[quote_box_left]“Sonho em voltar para o meu país. Odeio o nosso governo mas amo as pessoas da minha terra. Acredito, sim acredito, que voltar possa ser uma possibilidade, mas só depois da ditadura de Kim cair”[/quote_box_left]

Por quê o título “The girl with seven names”?
Vivi durante muito tempo com nomes diferente na China, pois como passei a fronteira de forma ilegal era considerada uma migrante ilegal e seria repatriada pelas autoridades chinesas caso fosse apanhada. Isso seria terrível, nestes casos os dissidentes enfrentam um horrendo destino. Como fui mudando tantas vezes de nome acabei por me tornar a rapariga com setes nomes, expressão que acabei por atribuir ao meu livro.

Ao longo do livro vai relatando aspectos da vida quotidiana que, agora, longe daquela realidade são totalmente erradas.
Sim, é verdade. Aprendíamos e ouvíamos histórias de torturas e coisas horrendas que os americanos faziam aos norte-coreanos e ainda hoje [estas histórias] acontecem. Existe propaganda anti-americana e as próprias crianças são ensinadas a assumir actos contra, por exemplo, os soldados americanos. Estas crianças ainda hoje cantam músicas insultuosas sobre os americanos e em todas as escolas espalhadas pela Coreia do Norte existem imagens dos soldados norte-coreanos a esfaquear soldados americanos, japoneses e sul-coreanos. É de tal forma que, durante a crise alimentar nos anos 90, segundo o regime da propaganda, o povo da Coreia do Norte só estava a sofrer e a passar fome por causa dos americanos e das suas sanções. É por isto que o povo culpa a América e os americanos dessa crise e de outras coisas. Nunca pensaram em culpar o nosso próprio governador. Lembro-me muitas vezes da minha avó me dizer, de forma simples e curta: “até durante o período colonial por parte do Japão as pessoas sofriam menos, bem menos do que agora”.

Como é que se sentiu quando percebeu que o mundo era bem diferente do que aquele que lhe mostraram durante anos? Toda a sua educação teve como base uma mentira…
Até a crise alimentar dos anos 90 começar a minha vida era bastante normal. Nós, os norte-coreanos, somos vítimas de lavagens cerebrais e afastados do resto do mundo. Essa falta de conhecimento e lavagem cerebral faz-nos não queixar, não nos permite queixar do nosso país porque é a única realidade que conhecemos, portanto achamos que as coisas são assim e é assim que devem ser. Aprendíamos que os sul-coreanos eram vítimas dos imperialistas americanos, que eram os seus escravos, por isso sempre assumimos que tínhamos o dever de os libertar. Ao mesmo tempo, aprendíamos que o nosso país era o melhor do mundo. Por um longo período de tempo, eu pensei que o resto do mundo, todos os países, eram piores que a Coreia do Norte, portanto sentia-me agradecida pelos nosso líderes nos oferecerem condições de um excelente país. Ainda hoje temos uma música de propaganda sobre isto que aprendemos logo em pequenos, chamada “Nothing to Envy”.

Mas o seu olhar mudou com a crise alimentar…
Sim, durante a crise e desde o momento que vivi junto à fronteira com China, comecei a perceber que o meu país não era de facto o melhor país do mundo, como pensava. As pessoas estavam a morrer à fome nas ruas, sofríamos constantemente de falhas de energia e, ao olhar do outro lado do rio, do lado da China conseguia ver que as coisas estavam bem melhores que no meu país.

Quando é que decidiu que ia atravessar? Foi planeado?
Não pensei em sair da Coreia do Norte até aos meus 17 anos, foi nessa altura que deixei o país. O meu irmão era contrabandista e estava de forma constante a passar entre a China e a Coreia do Norte, não achei que seria uma coisa muito grave se por uma vez fosse com ele e explorasse a China por algum tempo. Como toda a minha família vivia perto da fronteira com a China acabámos por desenvolver fortes relações com os guardas do posto fronteiriço. Foi assim que o meu irmão conseguiu manter o seu negócio. Também criei amizade com vários guardas. Foi então que um deles concordou em permitir que eu passasse a fronteira. Lembro-me que na altura menti à minha mãe. Ainda hoje me arrependo de lhe ter mentido. Disse-lhe que ia a casa de uma amiga, mas na realidade passei a fronteira sem que ela imaginasse. A minha mãe esperou-me durante horas, sem nunca lhe passar pela cabeça, nem a mim, que ficaríamos mais de uma década sem nos vermos. Foi muito doloroso, tanto para mim como para ela.

Como foi a vida na China logo depois da passagem da fronteira?
Estava tão assustada, tinha tanto medo quando vivia na China, medo de ser apanhada a qualquer momento. Por isso nunca me aproximei, nunca criei relações mais próximas com as pessoas, nunca disse a verdade sobre a minha identidade. Cheguei a ser apanhada pela autoridades chinesas que me acusavam de ser uma fugitiva norte-coreana, mas como estudei de forma tão intensa, e me dediquei tanto à cultura chinesa e à língua para sobreviver, consegui convencê-los que de facto era chinesa. Eles deixaram-me em liberdade. Foi um milagre.

Falemos um pouco sobre Kim Jong-un: apesar ter estudado fora da Coreia não trouxe uma visão diferente dos seus familiares antecessores.
Nos pontos principais ele de facto não é diferente do seu pai ou do avô. A Coreia do Norte continua a manter uma conduta de desrespeito pelos direitos humanos, de abuso, não existe liberdade de informação, de opinião, de associação ou sequer permissão para viajar, entre muitas outras coisas. Acredito que a grande maioria da população do meu país não sabe que o actual ditador estudou no estrangeiro. Foram muitos os estrangeiros que pensaram que esta formação no exterior pudesse trazer uma mudança positiva no actual líder, tornando-o, quem sabe, mais liberal. Mas a realidade é que na verdade não o fez ter uma mais mente aberta para o mundo exterior, nem para possíveis mudanças políticas na própria Coreia do Norte.

Acredita que o cenário será diferente no futuro?
Os fluxos de informação vindos do mundo exterior são, provavelmente, a forma mais eficaz de mudarmos a Coreia do Norte. Está a acontecer. A geração mais nova já assumiu os mercados negros e as negociações, isto faz com que a ideia da propaganda norte-coreana seja menos eficaz, dizimando a ideia de um paraíso socialista em que os seus líderes tudo fazem pelo bem da sociedade. Actualmente a propaganda tem um maior foco em como é horrível a vida na Coreia do Sul, por exemplo. A entrada de filmes estrangeiros, no país, e que acabam por se expandir pelo território, permite que as pessoas percebam e vejam como é que é o mundo fora da Coreia do Norte. Muito diferente de tudo aquilo que foi ensinado.

Quer voltar? Acredita que isso possa ser uma possibilidade?
Sonho em voltar para o meu país. Odeio o nosso governo mas amo as pessoas da minha terra. Acredito, sim acredito, que voltar possa ser uma possibilidade, mas só depois da ditadura de Kim cair.

A China é também vista como um mundo fechado e de censura. Como é que alguém que fugiu da Coreia do Norte vê o país?
De facto existe censura e outras formas de opressão pelo regime comunista na China, mas não se compara ao que acontece na Coreia do Norte. Em exemplos práticos, a sociedade chinesa, apesar de censura, tem acesso à internet. Um chinês se quiser sair da China pode fazê-lo, um norte-coreano não. Para mim, quando olho para a Coreia do Norte e para a China penso que este último é um país livre.

Neste momento tem estatuto de refugiada na Coreia do Sul. Esse procedimento foi fácil?
A situação dos refugiados da Coreia do Norte é diferente daquela que está a acontecer agora na Europa com os refugiados da Síria. A Coreia do Sul recebe-nos e oferece-nos benefícios. Somos todos considerados pela constituição por isso temos direitos. Ainda assim tanto a Coreia do Norte como a China tentam impedir-nos de conseguir alcançar a liberdade e, por causa disto, às vezes é difícil chegarmos em segurança ao nosso destino. A verdade é que somos sempre perseguidos e muitos que tentam fugir são apanhados na China e mandados de volta para os campos prisão na Coreia do Norte.

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