O preço da inércia

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]uitas têm sido as vozes que em Macau se têm lamentado do constante e inexplicável aumento de preços em relação a bens e produtos de consumo corrente, sejam bebidas engarrafadas ou alimentos, pacotes de sumos, vegetais, legumes, queijo, iogurtes, carne ou peixe, sendo indiferente que estejamos a falar de supermercados, mercados, restaurantes ou de bares e cafés.
Há quem explique esse aumento de preços com a pressão especulativa do imobiliário, argumentando que a carestia excessiva reflecte os altos valores das rendas. Esta poderá ser uma parte da verdade. Todavia, não a esgota, nem serve de justificação para que o mesmo produto, e tanto podem ser iogurtes como queijos, sumos de frutas ou conservas, de uma semana para a outra sofra um aumento de 20, 30 ou 40% no mesmo estabelecimento.
O alto valor que os cidadãos estão a pagar por produtos de supermercado, de pastelaria e café e refeições de má qualidade nos restaurantes, torna-se mais incompreensível quando se tem a possibilidade de comparar aquilo que é oferecido em Macau com o mesmo tipo de produtos e serviços em cidades cuja qualidade de vida é idêntica ou superior, mas em que a carga fiscal é muitíssimo mais alta.
Se em relação a Portugal é possível justificar as diferenças de preços com o empobrecimento verificado nos últimos cinco anos, devido às exigências da troika e à acção do seu governo, o que introduziu um factor de distorção das habituais regras do mercado, já no que respeita a outros países essas diferenças são absurdas. Para melhor se perceber do que falo tomemos alguns exemplos.
Estamos em pleno Agosto, há muita gente de férias e a viajar. Na semana que findou, depois de uma breve passagem por Tóquio, estive em Shimizu, município de Shizuoka, onde fiz várias refeições nos restaurantes locais. O preço por refeição – almoço ou jantar – variou entre 1300 (almoço) e 3714 ienes (jantar), ou seja, entre MOP 84,00 e MOP 239,00.
Pegando no segundo caso, que foi a refeição mais cara, esse valor diz respeito a uma steakhouse, serviu para pagar uma imperial, um bife de vaca (prime US beef filet), com cerca de duzentos gramas, acompanhado de batatas fritas, dois copos de vinho tinto de razoável qualidade e um leite-creme. O valor pago por esta refeição não chegava em Macau para comer apenas um bife, mesmo de qualidade inferior, numa das cantinas da praxe. Prova disso está no facto de depois de regressar ter almoçado num conhecido restaurante português da Taipa, dos económicos, e por um almoço para duas pessoas, composto por uma salada de polvo, dois nairos grelhados, um jarro pequeno de sangria, um pudim e dois cafés ter sido cobrada a quantia de MOP 694,00, em linha com os preços praticados em estabelecimentos similares de Coloane ou Macau. Um bife da vazia custa em regra mais de MOP 200,00, ainda sem taxas, e se for de lombo, quando há, cerca de MOP 300,00 ou mais.
Em Shimizu, um jantar com uma entrada de duas espetadas pequenas de espargos verdes e bacon, um prato principal composto por duas espetadas de camarões, lulas e vieiras, uma dose de batatas fritas e duas cervejas, num restaurante médio recomendado no meu hotel, custou 2440 ienes. Quer dizer, esta refeição ficou por menos de MOP $ 160,00.
Numa cervejaria da Taipa, só uma cerveja de pressão custa cerca de MOP 50,00, a que haverá que acrescentar as taxas respectivas. A mesma cerveja no Japão custou 518 ienes, isto é, MOP 33,00! Uma garrafa de vinho que em Portugal custa menos de 5 euros, custa cá num supermercado MOP 150, e num restaurante mais de MOP 250. Não é o transporte ou o seguro que a encarecem. Um café expresso em Narita fica em 200 ienes, qualquer coisa como MOP 12,80. A mesma bebida num café da cidade custa facilmente mais do que isso. Há dois meses, no Aeroporto de Barajas, em Madrid, paguei menos de MOP 80,00 por um hambúrguer grelhado (que não era de pacote) com batatas fritas e salada. Falo de aeroportos onde em regra os preços são mais altos do que no exterior.
Não vou incomodar os leitores com mais números e exemplos (os preços praticados nos mercados locais em relação ao peixe, ao marisco ou até um a simples ramo de salsa, bem como nalguns estabelecimentos de congelados quanto à carne importada ou em supermercados em relação a vinhos ordinários ou enchidos portugueses são obscenos). Estes chegam para demonstrar como os preços praticados em Macau estão claramente acima do que seria aceitável. E já não vou ao ponto de comparar a qualidade da confecção de muitos restaurantes de Portugal ou do Japão com os congéneres locais que praticam o mesmo nível de preços.
E há, ainda, mais uma agravante nisto tudo: a qualidade e simpatia do serviço prestado em Macau estão a anos-luz do que se pratica noutros locais de veraneio da Ásia. Aqui é vulgar ser necessário pedir – não me refiro a restaurantes de hotéis de 5 estrelas – para se trocarem pratos e talheres, como se fosse normal que depois de se petiscar uma entrada de camarões fritos ou um prato de peixe os mesmos talheres devessem depois ser directamente depositados em cima da mesa ou da toalha para a seguir se comer a carne de porco à alentejana…
Numa cidade que tem uma escola superior de turismo, que aposta nesta indústria como uma bandeira e cujos governantes fazem juras de preocupação com a qualidade de vida dos residentes e a oferta turística, é inaceitável que se pratiquem preços como os que estão a ser seguidos e que não haja fiscalização eficaz em relação àquilo que se oferece. É inaceitável que num estabelecimento de hambúrgueres com pretensões modernistas, na zona do NAPE, os clientes se quiserem limpar a boca tenham de pedir e pagar à parte um simples guardanapo de papel, como se o normal fosse uma pessoa usar a toalha da mesa ou a manga do casaco.
Sei que há quem esteja milionário com o desvario que por aí vai, tirando partindo da ausência de fiscalização, da inércia, do conúbio entre os poderes fácticos que impõem as suas regras à revelia e na ausência de leis adequadas. Desconheço as razões para o descontrolo dos preços em mercados, supermercados e restaurantes, embora saiba que nada justifica uma tão grande inacção por parte de quem tem a obrigação de zelar pela qualidade de vida dos residentes e pela oferta turística. O preço que os cidadãos de Macau pagam hoje pela inércia de alguns responsáveis é demasiado elevado para que essa atitude continue a passar despercebida.
Viver numa cidade com qualidade de vida, com um bom nível de oferta e uma procura adequada, com preços fiscalizados e serviços aceitáveis, não pode ser um luxo numa cidade como Macau que pretende que a aposta num turismo diferenciado seja para valer. Convenhamos que só labregos e pacóvios sem termo de comparação estão dispostos a pagar muito para serem mal servidos. E se por acaso os que aparecem não o são, e por aqui passam uma vez, depois não regressam. Cidades de dimensão similar, sem casinos, com receitas públicas infinitamente inferiores às de Macau e cargas fiscais mais pesadas, conseguem fazer muito melhor. Porquê?
Seria bom que quem governa pensasse nisto. E que os cidadãos se tornassem mais exigentes para com aqueles que lhes prestam maus serviços. Dos seus governantes e deputados aos restaurantes, dos cafés aos supermercados. Isto sem esquecer a péssima limpeza das ruas e a oferecida em muitos edifícios – cheiro a urina dos cães junto aos acessos, elevadores sujos, patamares imundos, condutas de lixo a tresandar, baldes com esfregonas desfeitas mergulhadas em águas sujas e sem detergentes, etc. – pelas empresas de condomínios, cujos miseráveis serviços são na maioria dos casos realizados sem prestação de contas e sem correspondência nos altos preços cobrados aos condóminos.
O preço pago pela inércia e a falta de exigência de quem o paga está a ser demasiado elevado. Com o arrefecimento das receitas do jogo, a curto prazo, os danos infligidos à RAEM podem tornar-se irreversíveis.

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